quinta-feira, 26 de março de 2015

A DESTRUIÇÃO DO SUS POR INTERESSE DOS PLANOS DE SAÚDE PRIVADOS




Créditos da foto: Fabio Rodrigues Pozzebom / ABr

Para atender financiadores de campanha, Cunha ameaça a existência do SUS

"Cunha recebeu R$ 250 mil de planos de saúde, engavetou a CPI que investigaria o setor e quer obrigar as empresas a pagarem planos privados aos funcionários.

Por Najla Passos

Uma proposta de emenda à constituição de autoria do presidente da Câmara, Eduardo Cunha (PMDB-RJ), se aprovada, poderá significar o mais duro golpe contra uma das maiores conquistas civilizatórias da sociedade brasileira no século XX: o Sistema Único de Saúde (SUS), universal e gratuito, criado para atender aos brasileiros, sem distinção de classe ou categoria profissional. Trata-se da PEC 451/2014, que obriga as empresas a pagarem planos de saúde privados para todos os seus empregados. E, consequentemente, desobriga o Estado a investir para que o SUS garanta atendimento de saúde de qualidade para todos.

Reconhecido como um dos principais lobistas das empresas de telecomunicações no Congresso após sua atuação veemente contra a aprovação do novo Marco Civil da Internet, Cunha é também um dos mais legítimos representantes dos planos de saúde que, só nas últimas eleições, distribuíram R$ 52 milhões em doações para 131 candidaturas de 23 partidos, em todos os níveis. O presidente da Câmara foi o que recebeu o terceiro maior “incentivo”: R$ 250 mil, repassados à sua campanha pelo Saúde Bradesco.

Em contrapartida, desde mandatos anteriores, faz da sua atuação parlamentar uma verdadeira cruzada em favor dos planos privados. Foi ele o relator de uma emenda à Medida Provisória 653/2014, posteriormente vetada pela presidenta Dilma Rousseff, que anistiava os planos em R$ 2 bilhões em multas. Também foi Cunha que, assim que assumiu a presidência da casa, engavetou o pedido de criação da CPI dos Planos de Saúde, de autoria do deputado Ivan Valente (PSOL-SP), que já tinha parecer positivo da consultoria da Câmara pela admissibilidade e contava com 201 assinaturas de deputados, 30 a mais do que o mínimo necessário previsto pelo regimento.

Com a PEC 461/2014, ele amplia consideravelmente o mercado dos planos privados, que têm crescido de forma vertiginosa e já alcança 50 milhões de usuários, um quarto da população brasileira. Grosso modo, a matéria legislativa propõe a privatização do sistema de saúde do trabalhador brasileiro, em detrimento de maiores investimentos no SUS, que beneficia não só àqueles que disputam atendimento médico direto, mas também a criança que é vacinada contra a pólio ou mesmo o cidadão que compra um simples pãozinho, que teve sua manufatura antes inspecionada pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa).

O SUS é o grande plano de saúde dos brasileiros. De todos os brasileiros. Nós precisamos fortalecê-lo, aperfeiçoá-lo, discutir seu financiamento e o pacto federativo que o mantém. E não acabar com ele. Isso significa um retrocesso em todos os sentidos, porque reduz direitos”, afirma o médico, professor e deputado Odorico Monteiro (PT-CE), membro titular da Comissão de Saúde e Seguridade Social da Câmara e ex-secretário de Gestão Participativa do Ministério da Saúde, para quem a caminhada civilizatória brasileira já está muito mais avançada do que o debate que o presidente da casa propõe com a PEC 451.

De acordo com o especialista, o Brasil virou a página do debate sobre a necessidade da implantação de um sistema universal de saúde com a promulgação da Constituição de 1988, que previu a criação do SUS. Ele acrescenta que, ainda que com enorme atraso em relação aos países europeus que investiram nas suas políticas de bem-estar social, o Brasil conseguiu se tornar o único país do mundo com mais de 140 milhões de habitantes a universalizar o atendimento integral à saúde, da prevenção à alta complexidade. “Essa é uma conquista da qual a sociedade não pode prescindir”, defende.

Odorico Monteiro relata que, na Europa, mesmo durante esta última crise econômica, que afetou profundamente muitas economias do continente, o fim dos sistemas universais de proteção à saúde sequer chegou a ser incorporado ao debate, devido à importância que têm. “Na Europa, mesmo durante a crise, não houve nenhum surto privatizador, porque os países entendem a importância dos sistemas universais para a proteção do trabalhador. Nem mesmo na Espanha ou na Grécia. Pelo contrário”, explica.

Ele analisa que, caso a PEC de Cunha seja aprovada, o país retrocederá ao que era antes da Constituição de 1988, quando o antigo Instituto Nacional de Assistência Médica e Previdência Social (Inamps), criado pela ditadura militar, funcionava como uma federação de planos de saúde das diferentes categorias profissionais, deixando à margem do atendimento um grande número de cidadãos. “Essa PEC tenta criar um grande Inamps privado, com planos de saúde cinco estrelas para alguns e nenhuma atendimento para outros. Isso é retrocesso. O Brasil já virou essa página”, insiste.

CPI dos Planos de Saúde

Autor do requerimento para a instalação da CPI dos Planos, o deputado Ivan Valente também critica a postura de Cunha ao apresentar a PEC e operar para beneficiar os planos privados, ao invés do conjunto da sociedade. “Está muito claro que Cunha trabalha para ampliar a oferta de saúde privada, enquanto o que o país precisa é fortalecer o SUS. Nós vamos entrar com um mandado de segurança no Supremo Tribunal Federal (STF) para viabilizar a CPI dos Planos de Saúde que ele engavetou”, afirma.

Valente lembra que ingressou com a CPI dos Planos no segundo dia deste período legislativo, antes mesmo da entrada da CPI da Petrobrás, já instalada com o objetivo explícito de desgastar o governo e está em pleno funcionamento. Cunha, entretanto, afirmou que a CPI dos Planos não tinha foco, desconsiderando o parecer da consultoria legislativa da própria casa, que falava que todos os requisitos para instalação estavam contemplados.

Quando nós fomos contestar a decisão dele em plenário, dizendo que ela era política e que o interesse dele na causa era grande, porque tinha recebido R$ 250 mil da Bradesco Saúde, houve um bate boca e meu microfone acabou sendo cortado”, lembra o deputado. Agora, ele está determinado a rever a decisão do presidente no STF.

Nós vamos entrar no STF com base no parecer da consultoria da Câmara, levantando a jurisprudência do própria corte que, por meio de uma outra decisão da ministra Rosa Weber, prevê que a CPI, tendo foco, é um direito inalienável das minorias e, como tal, deve ser instalada”, esclarece.

Reforma política já

Para Valente, a negativa de Cunha de instalar a CPI dos Planos, somada à sua atuação parlamentar em defesa do setor, mostra o quanto o financiamento de campanha determina os rumos das discussões das políticas públicas no Brasil. “Precisamos denunciar a que interesses ele atende ao tomar esse tipo de medida, que só fortalece a necessidade de uma reforma política que acabe com o financiamento privado de campanha”, aponta o deputado.

Odorico Monteiro, que também defende o financiamento público exclusivo das campanhas políticas, ressalta que é lamentável que as discussões de políticas públicas no país se deem sempre sob a tutela dos grandes grupos econômicos. “Acabar com o financiamento privado das campanhas eleitorais é outra página que precisamos virar na história deste país”, defende."

FONTE: escrito por Najla Passos no portal "Carta Maior"  (http://cartamaior.com.br/?/Editoria/Politica/Para-atender-financiadores-de-campanha-Cunha-ameaca-a-existencia-do-SUS/4/33111).

COMPLEMENTAÇÃO

As estratégias de destruir o SUS para mercantilizar a saúde

Se privatizada, a saúde deixa de ser um bem público como direito social para se tornar mais um produto inserido na dinâmica capitalista global.

Por José Tanajura Carvalhoeconomista, Mestre em Ciências Sociais, ex-professor da UFMG e da PUCMINAS, atualmente Pesquisador Associado do CEDEPLAR/UFMG


Créditos da foto: Truthout.org

"A proposta de destruir o SUS, na tentativa de privatizar a saúde pública brasileira, tem início no Governo PSDB/FHC e veio embrulhada no contexto do Plano Diretor da Reforma do Aparelho do Estado. De fato, a Reforma fez parte da ação governamental como componente da estratégia neoliberal, compreendida por três ações básicas: 

a) substituição ao que se chamou de administração pública burocrática e clientelista por uma administração gerencial ou nova administração pública; 
b) modificação do sistema previdenciário, transformando-o em fundos de investimento; 
c) privatização de empresas e serviços públicos passíveis de reverterem seus objetivos sociais para a busca do lucro. 

O princípio básico da proposta sintetizava-se na administração gerencial, estabelecida nas relações de mercado, inclusive naquelas atividades consideradas como bens e serviços públicos em geral, especialmente a saúde e a educação. 

A implantação dessa política assumiu procedimentos açodados do governo, quando até mesmo aspectos formais não foram de todo resolvidos na premência de impor o novo modelo e por concepção autoritária de governar. Segundo COSTA FILHO: “... o processo [referindo-se à Reforma] se afasta de qualquer padrão democrático na medida em que se constrói sobre o informalismo e o lobby, de natureza intrinsecamente excludente” (COSTA FILHO, 1997, p. 188). Com tal formulação, a Reforma se apresentou excludente, autoritária e na confirmação do caráter intransitivo do Estado brasileiro quanto à acessibilidade popular da informação-pública e de resistência às conquistas sociais.

Todavia, a reforma do aparelho estatal, empreendida por FHC/PSDB, ficou inconclusa diante da perspectiva distorcida da realidade socioeconômica e geopolítica do país, do inconsistente aspecto operacional, e da rejeição tácita pelos segmentos populares da sociedade. Porém, a sua essência resistiu e se consolidou. As agências autônomas, por exemplo, foram estabelecidas e fortalecidas, e se mantiveram insuladas no posicionamento de total independência do governo e, como sói acontecer, das classes populares, dialogando intensa e diretamente com grandes grupos econômicos e financeiros e representantes da elite burocrática. Bem como as proposições neoliberais se radicaram nas demais esferas de governo.

O entendimento, enfim, é de que a reforma do Estado FHC/PSDB avançou até onde foi possível e politicamente satisfatória ao capital. Haja vista que à época houve a promulgação da Emenda 29, com previsão de garantia de recursos para a saúde pelos governos dos municípios, dos estados e federal. Porém, enfaticamente, a Emenda 29 transparece ser parte da estratégia para disciplinar os recursos da saúde que, revestida no simulacro de uma proposta com alcance popular, viabilizaria os investimentos de interesses privados a ser completada com a destruição do SUS. 

Contudo, os segmentos capitalistas ligados à saúde não puderam contar com o timing político favorável à reversão em benéficos próprios das perspectivas de mobilização dos recursos públicos financeiros em montantes colossais e garantidos que a nova emenda constitucional projetava. 

Primeiramente, houve a necessidade política de dar tempo ao tempo para o governo se refazer do esforço despendido na venda das empresas estatais a preços aviltantes [ínfimos]. Fatos que não deixaram de melindrar a opinião pública, mesmo tendo sido um processo realizado com a escamoteação de informações sobre o processo de desestatização e o deliberado cerceamento de participação da sociedade civil, principalmente das classes populares, no debate que o assunto exigia.

A alternativa prudencial parece ter sido a de aguardar momentos propícios para, então, voltar à privatização de atividades com notório interesse social e sujeitas à mobilização política de segmentos populares que se sentissem prejudicados, como, por exemplo, a saúde pública, previdência social, grandes extensões do território nacional destinadas à agricultura em larga escala, e, no plano dos negócios, as vendas do Banco do Brasil, Caixa Econômica Federal e o que ainda havia de público na Petrobras. Todavia, a alteração do mando político no cenário nacional, em 2003, alterou substancialmente essas pretensões.

A partir de 2003, os setores privados voltaram à carga com o objetivo de mercantilizar a saúde no Brasil, com o apoio sustentado na parceria com o Banco Mundial, instituição que, segundo RIZZOTTO (2000), age nos “... interesses político/ideológicos e econômicos que tem permeado determinados processos, aparentemente favoráveis à consolidação do SUS, mas que em realidade modificam substancialmente a configuração original deste Sistema”. 

Como parte de sua estratégia, essa instituição financeira internacional publicou, em 2008, o livro "Desempenho hospitalar no Brasil: em busca da excelência", de autoria de Gerard La Forgia e Bernard Conttolenc, representantes da "Interhealth Soluções em Saúde" e da Universidade de São Paulo. Em síntese, os autores procuram apontar a incapacidade de o sistema hospitalar brasileiro se apresentar em níveis de eficiência exigidos para atender à demanda (sic) crescente e, implícita e explicitamente, indicam como solução a privatização do sistema de saúde, portanto, com a exclusão dos princípios da equidade, universalidade e gratuidade no formato original do SUS, sustentado na CRFB, Art. 196, e Leis nº 8080/1990 e 8142/1990.

A eficiência do aparelho estatal, alinhada no discurso neoliberal desses autores, é estabelecida na lógica recursos/custos/oferta/demanda/lucro em saúde, e deverá se propagar, continuamente, na fundamentação da aliança entre o Estado e o mercado de saúde. Não é difícil compreender que o estratagema é permitir o processo de cessão paulatina, pelo Estado, dos aparelhos de saúde, concomitante com o repasse de recursos públicos, perdão de dívidas e incentivos fiscais a grandes grupos privados constituídos segundo as regras do terceiro setor, seguradoras e grandes empresas de hospitais. No tempo em que se enalteceriam, com instrumentos de marketing político, os direitos individuais e não mais da sociedade como pedagogia-subliminar de controlar e transformar as necessidades de saúde em demandas de serviço.

A proposta dessas políticas de saúde não se efetiva a partir das causas de aumento das necessidades de saúde (promoção e proteção de saúde; prevenção, tratamento e reabilitação de doenças), mas nas formas de encontrar condições (infraestrutura hospitalar, tecnologias de última geração, geralmente importadas, centralização de atendimentos em grandes hospitais em cidades polos, com o objetivo de ganhos de escala, transportes de pacientes, precarização do exercício da medicina etc.) para dar conta do aumento da demanda (sic). Em outras palavras, a qualidade da saúde dá lugar à quantidade de atendimento. Isto é, a saúde deixa de ser um bem público como direito social. Para se afirmar no contexto das definições segundo as planilhas de custo, como forma de se manter os riscos financeiros sob o controle rígido em busca do máximo lucro, expressão objetiva da gestão por resultados, conforme explicito na Reforma de FHC/PSDB. Os objetivos da saúde deixariam de ser a conquista do bem viver, quando, então, passariam a ser geridos, não no enfrentamento das causas de necessidades vinculadas aos limites e fragilidades das pessoas, mas a partir de adequações dos recursos determinados pela imagem-objetivo do lucro. Em resumo, a necessidade de saúde transformar-se-ia, pois, em demanda de saúde, por conseguinte em mercadoria a ser pesada, vendida e comprada, por quem, evidentemente, tivesse dinheiro.

A proposição se completa na mensuração de resultado das ações na saúde através de metodologias externas de controle de qualidade ou autorregulação. Uma prática ilusória, pois o atributo saúde implica uma dimensão qualitativa e subjetiva que transcende qualquer método externo. Ademais, o corporativismo na autorregulação é decisivo diante da avidez do capital representado por grandes organizações privadas de saúde, as agências reguladoras e o próprio BIRD. A estratégia é, assim, desmontar, política e midiaticamente, a estrutura brasileira de saúde fazendo romper os ganhos sociais representados pelo SUS, com o sucateamento final do aparelho estatal de saúde, a partir da restrição do investimento público e da renuncia fiscal pelas diferentes esferas de governo em favor dos planos privados de saúde, pelo menos até quando o sistema permanecer nas mãos do Estado e a saúde como direito social estiver viva na consciência da sociedade civil, para, então, doar ou subordiná-lo à iniciativa privada, organizações do terceiro setor, cooperativas de saúde e seguradoras em geral."

Referências:

BERQUÓ, Laura Taddei Alves Pereira Pinto. O princípio da eficiência e o setor público não estatal. In: SEMINÁRIO BALANÇO DA REFORMA DO ESTADO NO BRASIL – 6 a 8 de agosto de 2002, Brasília/DF, MPOG, 1999.

RIZZOTTO, Maria Lúcia Frizon. O Banco Mundial e as políticas de saúde no Brasil nos anos 90. Unicamp, 2000.

FONTE da complementação: escrito por José Tanajura Carvalho, economista, Mestre em Ciências Sociais, ex-professor da UFMG e da PUCMINAS, atualmente Pesquisador Associado do CEDEPLAR/UFMG. Publicado no portal "Carta Maior"   (http://cartamaior.com.br/?/Editoria/Politica/As-estrategias-de-destruir-o-SUS-para-mercantilizar-a-saude/4/33131).

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