quarta-feira, 21 de janeiro de 2015

AS RESPONSABILIDADES DA FRANÇA NO CASO "CHARLIE"




AS RESPONSABILIDADES DA FRANÇA NO CASO "CHARLIE"

"O professor Salém Nassar, da Fundação Getúlio Vargas e presidente do Instituto de Cultura Árabe, em São Paulo, ressalta, em entrevista a Paulo Moreira Leite, erros ao colocar a responsabilidade dos crimes exclusivamente no Islã. "A França é responsável, duplamente, pela prevenção dos crimes em primeiro lugar, e pela integração efetiva da população islâmica no seu tecido social", diz. Afirma que versão oficial de que os autores foram os dois irmãos "é tocada por várias dúvidas ainda por resolver" e coloca até que "não é impossível pensar, para quem acreditar que houve uma inflexão recente na política francesa em favor da Palestina, que o ataque servirá a colocar os ponteiros de novo na direção do favorecimento de Israel"

Do "Brasil 247":


Um ponto de vista que foge do pensamento único dos últimos dias sobre o ataque ao jornal satírico francês "Charlie Hebdo", que deixou 12 mortos, é exposto pelo professor da Fundação Getúlio Vargas Salém Nassar, presidente do Instituto de Cultura Árabe, em São Paulo, em entrevista ao blog do jornalista Paulo Moreira Leite no "247". Ele destaca erros em colocar a responsabilidade dos crimes exclusivamente no Islã e traz à tona também as responsabilidades do governo francês no episódio.

"A França é responsável, duplamente, pela prevenção dos crimes em primeiro lugar, e pela integração efetiva da população islâmica no seu tecido social", defende. "E isso para não dizer nada da responsabilidade que resulta do passado colonial e que faz da França devedora em relação às antigas colônias, em relação aos imigrantes e em relação aos franceses descendentes de imigrantes", acrescenta.

Ele afirma que a versão oficial sobre a autoria do ataque, que seria dos irmãos Kouachi, de origem argelina, "descansa sobre uma conclusão básica portadora de graves consequências: a existência no ocidente de células dormentes do terror islâmico". Segundo ele, "essa versão é tocada por várias dúvidas ainda por resolver", mas, "sendo verdadeira, e na medida em que esse tipo de célula existe, o desafio seria entender a coisa pelo que ela de fato seria: antes de ser um confronto entre ocidente e Islã, tratar-se-ia de um tipo específico de criminalidade que demanda medidas específicas de trabalho policial e de inteligência".

Em outro trecho da entrevista, Nassar aponta que "o problema, em tudo que respeita ao chamado terrorismo e à chamada guerra contra o terror, é que aqui o envolvimento dos serviços de inteligência ou dos serviços secretos não é, como se poderia imaginar, exclusivamente o de prevenir o terror e a violência. Muitas vezes, ao contrário, a função desses serviços é o de justamente manipular e instrumentalizar a violência e o terror, e pô-los a serviço de agendas determinadas".

De acordo com o estudioso, é preciso analisar os verdadeiros propósitos que levaram ao ataque e trouxeram tantas consequências. "Se, neste caso, a autoria se circunscreve aos irmãos franceses, então é possível que o propósito fosse mais banal: a vingança pela sátira ao profeta, por exemplo", sugere. Ele afirma até que "não é impossível pensar, para quem acreditar que houve uma inflexão recente na política francesa em favor da Palestina, que o ataque servirá a colocar os ponteiros de novo na direção do favorecimento de Israel. Não posso, como disse, afirmar que sei, mas sei que muitas coisas são possíveis e que nós só estamos enxergando a casca"

FONTE: do "Brasil 247"  (http://www.brasil247.com/pt/247/mundo/167170/As-responsabilidades-da-Fran%C3%A7a-no-caso-Charlie.htm)

A ENTREVISTA:

RESPONSABILIDADES FRANCESAS


Por Paulo Moreira Leite

"Estudioso de cultura árabe lembra que, se ocorreu um crime em Paris, o primeiro responsável é o governo da França -- e não o islamismo

A cada dia que passa, fica claro que o atentado de Paris criou uma situação típica em que ideias certas podem aparecer em lugares errados e servir para defender causas injustas. O princípio irrevogável da "liberdade de expressão" tem sido empregado para justificar a publicação de charges sobre o profeta Maomé, que são vistas de forma insultuosa e ofensiva por boa parte da população muçulmana no mundo inteiro. Admitindo que seria absurdo defender a censura a publicações como "Charlie Hebdo", seria igualmente estúpido imaginar que uma revista representa, em todas as sociedades e em todas as latitudes apenas aquilo que seus editores imaginam que ela é e têm o direito de expressar. A experiência humana ensina que, com frequência, uma revista nem sempre é uma revista, um filme pode não ser apenas um filme e um livro pode não ser apenas um livro.

A experiência de povos e países mostra que objetos de natureza cultural também podem ser parte de uma ofensiva geral contra uma cultura diferente, uma peça de ataque político, uma tentativa de humilhação, preconceito e violência. Estamos falando de eventos frequentes num mundo globalizado, onde populações de nações pobres e enfraquecidas disputam diariamente — e com grande dificuldade — seu direito à dignidade e à própria identidade.

Para falar dessa situação de um ponto de vista que foge do pensamento único desses dias, entrevistei o professor Salém Nasser. Professor e diretor do Centro de Estudos de Direito Internacional da Fundação Getúlio Vargas, Salém Nasser residiu quatro anos em Paris, onde estudou na Sorbonne. Ele também é presidente do Instituto de Cultura Árabe, em São Paulo, um centro nascido sob inspiração das ideias de Edward Said, o professor palestino que ensinou a humanidade a compreender a distância entre o Oriente real — e aquela construção ideológica nascida como parte de um esforço de dominação. Foi uma longa entrevista. Leia, a seguir, os principais trechos:

PERGUNTA — Por que é tão difícil falar sobre as responsabilidades reais pelo atentado contra o Charlie Hebdo?

RESPOSTA —
Uma representação do sentido último dos eventos de Paris que se vai instalando quase que naturalmente é aquela que vai vendo nisso uma oposição absoluta entre o Ocidente e o Islã. A responsabilidade pela violência vai sendo, também naturalmente, transferida das pessoas dos criminosos para essa entidade fluida e englobante que é "o Islã". Essa religião, essa cultura, e também todos aqueles que a ela pertenceriam por alguma razão, por ser a sua profissão de fé, por ser a crença de sua ancestralidade, por constituir parte de sua identidade nacional, são vistos como culpados por oferecerem algum terreno fértil à violência e ao pensamento que a sustenta. Uma das primeiras reações, mesmo no seio do pensamento politicamente correto do Ocidente, ao mesmo tempo em que admite que nem todo o Islã é assim, exige desse Islã genericamente concebido que entre em guerra com a sua franja violenta e a condene muito vocalmente, falta do que será visto como cúmplice.

PERGUNTA — Quais as consequências dessa postura?

RESPOSTA —
São duas consequências terríveis. A primeira é a imputação de uma responsabilidade coletiva aos muçulmanos e ao Islã que acaba por marcar uma oposição entre dois mundos diversos e por colocar tudo o que se relaciona ao Islã numa posição defensiva e diante da obrigação de se conformar aos cânones ocidentais. A segunda e mais grave é relacionar os crimes como esses ocorridos em Paris exclusivamente ao Islã ou à fé islâmica dos criminosos e despir esses criminosos de qualquer outra identidade, qualquer outro pertencimento, cultural ou nacional e colocá-los na conta do Islã apenas.

PERGUNTA — Como é isso?

RESPOSTA —
Tende-se assim a esquecer que os dois irmãos são antes de qualquer coisa franceses, que eles de fato não tinham qualquer outra nacionalidade, que nasceram e cresceram na França, que ali foram educados, em escolas francesas, que se comunicavam em francês. Eles eram parte de uma parcela empobrecida e marginalizada da sociedade francesa. A representação de que estou falando termina por isolá-los ainda mais, quase que os cuspindo definitivamente para fora do tecido social a que pertencem. Ela transfere, ou tenta transferir para o Islã não só a responsabilidade pelos crimes que cometeram, mas também a responsabilidade pela sua não integração à sociedade francesa. A mensagem não é a de que a França está mal equipada e pouco disposta a ser de fato uma sociedade plural, mas a de que é o Islã que não sabe se apagar para que os muçulmanos sejam aceitos como parte integrante da identidade francesa. A verdade, no entanto, é que a França é responsável, duplamente, pela prevenção dos crimes em primeiro lugar, e pela integração efetiva da população islâmica no seu tecido social. E isso para não dizer nada da responsabilidade que resulta do passado colonial e que faz da França devedora em relação às antigas colônias, em relação aos imigrantes e em relação aos franceses descendentes de imigrantes.

PERGUNTA — Por que esse esquecimento é possível?

RESPOSTA —
Praticamente todas as análises e todos os comentários partem de uma presunção: a de que se conhece a autoria do atentado e, em seguida, de que se conhece os objetivos perseguidos pelos responsáveis. Essa presunção parte de premissas que sempre deveriam ser postas em dúvida.

PERGUNTA — Por que é preciso duvidar?

RESPOSTA —
Não serei eu a dizer o que de fato aconteceu em Paris nem a subscrever alguma tese que seria usualmente posta na categoria "teoria da conspiração". Diga-se de passagem que aqueles que apresentam explicações alternativas às oficialmente aceitas costumam ser classificados como "teóricos da conspiração" a fim de serem despidos de toda credibilidade, como pessoas dignas de algum tipo de tratamento psicológico que combata a propensão à fantasia. O que não se costuma lembrar é que as explicações oficiais também são teorias que normalmente se fundam em algum tipo de conspiração: por exemplo, dezenove pessoas conspiram para atacar as torres gêmeas ou dois irmãos e dois cúmplices conspiram para atacar o Charlie Hebdo e causar pânico em Paris. Para além disso, pensa-se que as explicações oficiais são razoáveis, críveis, por oposição ao fantasioso das teorias alternativas. Muitas vezes, passado um certo tempo, se descobre ou se revela ou se confessa que, de fato, alguém falsificou a verdade, mas isso só acontece quando a mentira já serviu completamente a seu propósito.

PERGUNTA — O que se pode falar sobre o ataque de Paris?

RESPOSTA —
A versão corrente sobre a autoria diz que os dois irmãos, anteriormente jovens normais da comunidade francesa de origem argelina, recentemente doutrinados no Islã radical, sabidamente envolvidos na transferência de combatentes para o Iraque e a Síria e próximos da Al Qaeda no Yemen, atacaram o Charlie Hebdo, mataram doze pessoas e fugiram, e que, no dia seguinte um ou dois de seus cúmplices agiram matando uma policial, e que uns e outro(s) tomaram reféns em dois locais diferentes antes de serem finalmente mortos pela polícia.

PERGUNTA — O que há de errado nesse enredo?

RESPOSTA —
Essa versão é tocada por várias dúvidas ainda por resolver. Uma primeira questão diz respeito ao grau de profissionalismo e de preparo dos supostos perpetradores: alguns sinais pareciam indicar que estavam bem treinados e que a operação havia sido planejada com cuidado (o dia e a hora da reunião dos redatores e editores, por exemplo) e outros que foram emergindo de testemunhos e de fontes da polícia pareciam indicar todo o contrário (o erro sobre o andar em que operava o jornal, por exemplo). Outras questões estão relacionadas ao caráter suicida (ainda que com desfecho diferido) ou não da operação, às razões da ocorrência do segundo ataque contra a policial, ao caráter proposital ou acidental da escolha do mercado kosher como local de tomada de reféns… Mas, a mais relevante das sombras que pairam sobre esta tese da autoria dos irmãos é a do documento de identidade encontrado no carro de fuga. Na verdade, esse é um aspecto da tese oficial que é dificilmente explicável, ainda que se tratasse de perfeitos amadores desastrados. E, no entanto, desse detalhe singular dependeu todo o desenlace do caso, já que somente assim teria sido determinada, desde o primeiro instante, a suposta autoria! E ainda assim a precoce descoberta terminou em uma segunda tragédia que se sobrepôs à primeira.

PERGUNTA — Por que essa versão recebe tanta credibilidade?

RESPOSTA —
Apesar das dúvidas não resolvidas, a tese explicativa que se instala na versão oficial descansa sobre uma conclusão básica portadora de graves consequências: a existência no ocidente de células dormentes do terror islâmico, com conexões com as organizações transnacionais desse terror e que podem agir a qualquer momento. Essa versão oficial pode até mesmo ser verdadeira. Sendo verdadeira, e na medida em que esse tipo de célula existe, o desafio seria entender a coisa pelo que ela de fato seria: antes de ser um confronto entre ocidente e Islã, tratar-se-ia de um tipo específico de criminalidade que demanda medidas específicas de trabalho policial e de inteligência.

PERGUNTA — A hipótese oficial, se for considerada verdadeira, coloca a responsabilidade sobre o Estado francês? Fica complicado falar que a responsabilidade é do “islamismo”….

RESPOSTA —
O problema, em tudo que respeita ao chamado terrorismo e à chamada guerra contra o terror, é que aqui o envolvimento dos serviços de inteligência ou dos serviços secretos não é, como se poderia imaginar, exclusivamente o de prevenir o terror e a violência. Muitas vezes, ao contrário, a função desses serviços é o de justamente manipular e instrumentalizar a violência e o terror, e pô-los a serviço de agendas determinadas. E porque os serviços secretos levam esse nome é de se esperar que as operações sejam feitas de modo que não se possa determinar com certeza a autoria e o que aconteceu. É também por isso que, por vezes, ainda que se conheça a autoria imediata (quem apertou o gatilho, quem detonou a bomba…), não se consegue determinar com certeza de onde partiu a ordem inicial e qual a agenda que está sendo servida. É de se esperar, inclusive, que nem mesmo o executor final conheça a resposta a essas perguntas.

PERGUNTA — Quais as consequências de se aceitar um enredo com tantos pontos incoerentes?

RESPOSTA —
É usual, quando se procura por explicações alternativas, que se olhe para as consequências dos acontecimentos, para as suas resultantes, e se busque no beneficiados os suspeitos mais prováveis. Haveria, portanto, propósitos reais, mas encobertos, para os atos de violência, que são diferentes dos imaginados imediatamente. O problema é que alguns desses episódios, e este é o caso do "Charlie Hebdo", têm consequências várias e complexas que não permitem com facilidade isolar o propósito fundamental que levou a eles. Se, nesse caso, a autoria se circunscreve aos irmãos franceses, então é possível que o propósito fosse mais banal: a vingança pela sátira ao profeta, por exemplo. Se eles agiam sob ordens da Al Qaeda, talvez o seu ato se inscreva na campanha para insuflar o medo e o terror nas sociedades ocidentais e para atrair novos adeptos e combatentes. Mas não se pode de todo descartar outros possíveis propósitos, já que estão ligados a prováveis consequências. O choque que o evento causou na opinião pública pode servir a alimentar o fogo vital da guerra contra o terror que é o medo. O mesmo choque pode facilitar a justificativa de ações recentes e outras futuras da França no contexto dessa guerra ao terror e no contexto mais amplo da África e do Oriente Médio. Há quem acredite que o ataque foi pensado para forçar a continuidade do alinhamento da França com os Estados Unidos em relação a esses contextos citados. Não é impossível pensar, para quem acreditar que houve uma inflexão recente na política francesa em favor da Palestina, que o ataque servirá a colocar os ponteiros de novo na direção do favorecimento de Israel. Não posso, como disse, afirmar que sei o aconteceu nem como. Mas sei que muitas coisas são possíveis e que nós só estamos enxergando a casca."

FONTE:  escrito pelo jornalista Paulo Moreira Leite em seu blog. Transcrito no "Brasil 247"   (http://paulomoreiraleite.com/2015/01/20/responsabilidades-francesas/).

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