quinta-feira, 14 de agosto de 2014

A FALÁCIA DA "ESTAGFLAÇÃO" NO BRASIL




Mitos Econômicos Brasileiros #9: “O Brasil vive um período de estagflação”

Do blog "Novas Cartas Persas"


Palavra da moda na mídia especializada para retratar situação da economia hoje não resiste aos fatos e à análise histórica


"Depois de a mídia alardear que o Brasil seria palco da “tempestade perfeita” em 2014 (alguém notou?), ter colocado o país entre os “cinco frágeis” (tão frágeis que, meses depois, alguns deles criaram banco de desenvolvimento alternativo ao Banco Mundial), chegou a vez de a mídia decretar que o Brasil “enfrenta o dilema clássico de épocas de estagflação”. Mais uma vez, a tentação é pegar um conceito anglófono, que funcionou bem para definir uma época da história econômica dos EUA (fim dos anos 1970, início dos 1980), para emplacar um discurso catastrofista em terras tupiniquins.

Um colunista da "Folha" “explicou”, em sua “análise” que estagflação é a “combinação de economia estagnada, ou em desaceleração, com inflação alta, ou em aceleração”. Simplificou tanto que errou a definição (erro recorrente, aliás, entre os “setoristas da estagflação”).

Sim, a palavra, emprestada do inglês, é uma fusão de estagnação e inflação. Mas, ao contrário do senso comum, o sentido de “estagnação” não se refere apenas a crescimento do PIB, mas refere-se também (e sobretudo) ao desemprego em massa. Assim, para tentar aproveitar a explicação do arauto do apocalipse, a definição de estagflação seria algo como “a combinação de economia estagnada, ou em desaceleração, com inflação alta, ou em aceleração e taxa de desemprego alta ou em elevação”.

Por que a minha insistência com a questão do emprego? Além de ser parte fundamental da definição internacionalmente aceita, tem uma razão de ser. O paradoxo fundamental é a coexistência de demanda interna baixa e inflação alta – e demanda baixa significa desemprego (não por acaso, o dilema da curva de Phillips é desemprego baixo vs inflação baixa). Vamos explicar como funciona, a grosso modo, os grandes dilemas do gestor de política econômica:

A lógica é simples, em uma situação normal de ciclo de baixo crescimento, empresas não vendem e têm que demitir; há aumento do desemprego e redução da demanda total (menos pessoas comprando, para falar em bom português). Com menos pessoas comprando, os preços tendem a cair, ou pelo menos não aumentam (sob pena de vendedores terem ainda mais dificuldade para acharem compradores), e a inflação cai. No fim, há recessão, desemprego, mas a inflação é baixa. O que o gestor de política econômica tem a fazer nessa situação? Um conjunto de medidas para estimular o consumo e o emprego, gerando assim crescimento e a roda volta girar (políticas anticíclicas).

Num quadro oposto, em que o desemprego é baixo (ou moderado) e o crescimento é alto (ou moderado), um problema pode ser uma taxa de inflação elevada (ou até mesmo, hiperinflação). Aqui, pessoas estão empregadas e seguem comprando, e a economia cresce, mas a inflação prejudica tanto as bases do crescimento, quanto o poder de compra dos assalariados. Aqui, o remédio também é o oposto: o esforço tem que ser o de “enxugar” o dinheiro da economia, isto é, cortar gasto público, aumentar juros (para diminuir o consumo e aumentar o dinheiro poupado) e diminuir o dinheiro em circulação. A inflação cai, o crescimento e o emprego se estabilizam (assim como o poder de compra dos assalariados) e a roda volta a girar.

Mas, numa situação de baixo crescimento, alto desemprego e inflação elevada, as soluções usuais (expansionismo/constracionista) apresentadas para consertar um problema (digamos, crescimento e emprego) pioram o outro (a inflação), e vice-versa. Como resultado, na prática, nenhum dos problemas é resolvido e a situação piora.

Por exemplo: num caso de estagflação, o gestor da política econômica pode decidir que é hora de afrouxar o gasto público (expansionismo fiscal) sem critério e aumentar o crédito e dinheiro circulante disponível para os agentes econômicos (expansionismo monetário, via, por exemplo, redução da taxa de juros, redução do depósito compulsório e uso de bancos públicos para manter ou aumentar o crédito ao consumidor/produtor).

Só que em uma situação de estagflação, a inflação, por algum motivo, não está baixa, mas sim elevada, e um conjunto de medidas anticíclicas aumentaria a quantidade de crédito e de demanda, piorando o quadro de inflação, o que, por sua vez, mina as bases do crescimento. Da mesma forma, sufocar o crédito (aumentar juros) e a demanda (aumentar o desemprego), pode aprofundar o quadro recessivo – sem, necessariamente, diminuir a inflação (por exemplo, se houver uma fuga de dólares e desvalorização da moeda local).

Certo, então a questão é: estamos ou não nessa situação?

Uma vez tendo claro o conceito, podemos verificar os dados e a história. Comecemos com a história.

O termo, como foi citado, foi cunhado para explicar a situação dos EUA, entre 1972 e 1975. O que houve nesse período? Em outubro de 1973, aconteceu o primeiro choque do petróleo: nesse caso, uma forte redução (choque) de oferta dessa mercadoria fundamental e de difícil substituição para as economias modernas. O preço subiu e, num contexto de mercado aquecido (a inflação estava em aceleração), se espalhou por toda a economia, gerando inflação e aumento de custos para as empresas, afetando o crescimento. À elevação dos preços, se juntaram a recessão e elevação do emprego (ampliar os gráficos):

entre o 1º trimestre de 1974 e o 1º trimestre de 1975, o PIB anualizado dos EUA ficou negativo em 4 de 5 trimestres. 

Ao mesmo tempo, a taxa de desemprego foi de 4,9%, em dezembro de 1973, para 8,6% em março de 1975 

E a taxa de inflação acumulada de 12 meses foi de 5,7% em agosto de 1973, acelerou de maneira consistente até chegar em 12,3% em janeiro de 1975

Senhoras e senhores, ISSO é estagflação.

O outro período da história americana em que isso aconteceu foi entre o fim de 1981 e o início de 1983 (
ampliar os gráficos):

entre o 4º trimestre de 1981 e o 4º trimestre de 1982, o PIB anualizado dos EUA ficou negativo em 3 de 5 trimestres e muito baixo (0,4) em um deles.
Ao mesmo tempo, a taxa de desemprego que era elevada (7,9%), em outubro de 1981, acelerou de maneira consistente até chegar 10,8% em março de 1982
No período, a taxa de inflação acumulada de 12 meses se manteve em patamar mais elevado que no período da estagflação de 1973-1975, quase sempre em dois dígitos, mesmo com recessão e desemprego em alta (configurando-se, portanto, em estagflação do mesmo modo), embora não estivesse em aceleração (de fato, estava em declínio)

Tá, mas e o Brasil com isso? Todos os analistas estão falando de estagflação aqui. É o caso?

Vou deixar os dados responderem por mim, fazendo análise semelhante.

Entre o 1º trimestre de 2009 e o 1º trimestre de 2014, houve apenas dois trimestres que registraram PIB negativo, em valores anualizados: 3º e 4º trimestres de 2009 (e além desse, apenas no 3º trimestre de 2012 o PIB anualizado ficou abaixo de 1%). Em 2009, a inflação se manteve baixa e em desaceleração, comportamento “esperado” em um contexto de desaquecimento da economia. Por outro lado, o desemprego seguiu em queda. Resumo da ópera, nos últimos cinco anos, não há nenhuma evidência que sustente afirmações ou sugestões de que o Brasil estivesse ou esteja enfrentando agora uma situação de estagflação.

O quadro que existe no momento é outro 
(ampliar os gráficos):

apesar de o crescimento do PIB estar em um patamar baixo, não foram registrados vários trimestres seguidos com PIB anualizado próximo a zero ou inferior (como seria uma situação de estagnação do PIB); 

O desemprego não apenas segue baixo, como também segue em declínio a cada mês na comparação anual, e atinge patamares recordes negativos, mesmo se o saldo de empregos formais esteja caindo (o que importa é a desocupação).

Quanto aos preços, vê-se que a demanda está aquecida, mas não está acelerando. A inflação está em patamar acima da meta, mas está estável, considerando a trajetória dos preços (no acumulado de 12 meses), nos últimos 5 anos, quase sempre dentro da banda e sempre abaixo de 7,5%.

O país não vive, portanto, “o dilema clássico das épocas de estagflação”: nem a demanda está reprimida (desemprego), nem os preços estão fora de controle (inflação alta em aceleração). Seguir uma política fiscal e/ou monetária restritiva agora é inócua para conter alta dos preços (meu palpite é que são fatores climáticos conjunturais que afetaram os preços: em 2013, o vilão foram os alimentos; em 2014, a energia). Uma política fiscal e/ou expansionista pura e simples tampouco resolveria o baixo crescimento: aí sim, poderia desencadear um processo inflacionário de demanda.

O remédio está fora dessas receitas usuais binárias: está em aumentar o investimento e, tendo em vista que o empresário tende a adotar posturas pro-cíclicas (investe se há crescimento, deixa de investir se não há crescimento, reforçando a tendência do momento), cabe ao Estado induzir e liderar a retomada desse investimento.


Outro passo importante é reforçar o pacto entre industriais, trabalhadores e governos em outras bases: na base justamente do compromisso em investimento e inovação. Com a retomada do investimento, o aumento da produção é retomado, e do crescimento dali gerado não resultaria grande pressão inflacionária. O nó é desfeito com uma demanda interna já bem situada na ponta para absorver a produção, dada a situação de baixo desemprego. O país entraria num novo ciclo de aumento do PIB, e as soluções usuais de política fiscal e monetária passam a ter mais eficácia. Não se trata de um dilema (aquecer ou desaquecer a demanda). O problema é um só: investimento.
Certo, então, como disse o presidente do Banco Central, estamos “bem longe” de uma situação de estagflação hoje. Mas, algum dia, já enfrentamos tal quadro ultimamente?

Nos últimos 20 anos, o único período que apresentou baixo crescimento, elevação do desemprego e elevação da inflação aconteceu entre o 4º trimestre de 2001 e o 1º 2004, no ocaso do governo FHC/PSDB-DEM e no primeiro ano do governo Lula 
(ampliar os gráficos).



Apesar de, tecnicamente não ter registrado variação negativa no acumulado, o PIB trimestral anualizado [nos anos FHC/PSDB] flertou várias vezes com a recessão (isso é, variação negativa do PIB em vários trimestres seguidos): ficou abaixo de 1% em 5 desses 10 trimestres, caracterizando, assim, um quadro de estagnação econômica. Em 4 trimestres, a variação ficou entre 1% e 2%, e apenas no 1º trimestre de 2003, o crescimento anualizado foi acima de 2% (de 2,5%).

Ao mesmo tempo, a taxa oficial de desemprego 
[nos anos FHC/PSDB] se manteve em níveis elevados, sempre acima dos dois dígitos. O desemprego medido pelo DIEESE ultrapassava 20% em algumas regiões metropolitanas.

E a inflação 
[nos anos FHC/PSDB] não só estava em patamar elevado, como também estava acelerando. Se hoje a mídia entra em pânico quando a inflação anualizada ultrapassa o limite em 0,02 ponto, como em junho de 2014, e chega a 6,52%, o pessoal teria um ataque cardíaco: o IPCA em agosto de 2012 era de 7,46%. Ruim? Não, era só o começo: a inflação fecharia o ano em 12,53%. O IPCA acumulado de 12 meses chegaria ao pico de 17,24% em maio de 2003, antes de baixar a partir de então até chegar a 5,24% em abril de 2004.

Eis ai, senhoras e senhores: o Brasil não vive hoje em situação de “estagflação” e, se em algum período nos últimos anos o país viveu uma “estagflação” foi entre 2001 e 2003, e não agora. Na época, nenhum grande “analista” de jornal disse que o Brasil vivia “o dilema clássico de épocas de estagflação”.


FONTE: do blog "Novas Cartas Persas"   (http://novascartaspersas.wordpress.com/2014/08/12/mitos-economicos-brasileiros-9-o-brasil-vive-um-periodo-de-estagflacao/).[Negritos e trechos entre colchetes acrescentados por este blog 'democracia&política']

2 comentários:

Unknown disse...

E agora, José?

Unknown disse...

Ao Maurício Galvane Paladini,
A análise do blog "Novas Cartas Persas" foi muito bem feita com os dados da época. Ninguém, nem o tal José, imaginava a posterior queda de mais de 7% no crescimento da China (de mais de 14% para menos de 7%), nem o longo 3º turno no Brasil com a busca desesperada da direita brasileira de voltar logo ao poder por qualquer meio, sem esperar novas eleições, com a tática de promover (com integral apoio da mídia) o caos político, econômico e social para justificar e facilitar soluções drásticas heterodoxas para a derrubada do governo eleito. Portanto, não critiquemos o "Novas Cartas Persas".
Maria Tereza