domingo, 16 de março de 2014

GUSHIKEN, MORTO, DERROTA A "VEJA"


Mentiras da imprensa


Depois de morto, Gushiken derrota ‘Veja’: o caso das falsas contas no exterior

A Veja dá a entender que não eram fantasiosas as contas no exterior. E não oferece um único indício digno de confiança. Infere, da identidade dos acusadores e dos interesses em jogo, a verdade do conteúdo do documento. A falácia é de doer na retina.” (trecho da sentença que condenou “Veja”)


por Rodrigo Vianna

"Quase oito anos se passaram. A Justiça levou tanto tempo para ser feita, que a vítima dos ataques covardes já não está entre nós. Fundador do PT, bancário de profissão, Luiz Gushiken foi ministro da SECOM na primeira gestão Lula. Por conta disso, teve seu nome incluído entre os denunciados do “mensalão” (e depois retirado do processo, por absoluta falta de provas)…

Mas os ataques de que tratamos aqui são outros. Em maio de 2006, a revista “Veja” publicou uma daquelas “reportagens” lamentáveis, que envergonham o jornalismo. A torpe “reportagem” (acompanhada de texto de certo colunista que preferiu se mudar do Brasil – talvez, por vergonha dos absurdos a que já submeteu os leitores) acusava Gushiken de manter conta bancária secreta no exterior. Segundo a publicação da editora Abril, os ministros Marcio Thomaz Bastos, Antonio Palocci e José Dirceu (além do próprio Lula!) também manteriam contas no exterior.

Qual era a base para acusação tão grave? Papelório reunido por ele mesmo – o banqueiro Daniel Dantas. A “Veja” trabalhou como assessoria de imprensa para Dantas. Da mesma forma como jogou de tabelinha algumas vezes com certo bicheiro goiano. Mas, mesmo ataques vis, precisam adotar alguma técnica, algum rigor.

No caso das “contas secretas”, não havia provas. Havia apenas o desejo da revista de impedir a reeleição de Lula. O vale-tudo estava estabelecido desde o ano anterior (2005) – com a onda de “denuncismo” invadindo as páginas (e também as telasvivi isso de perto na TV Globo comandada por Ali Kamel) da velha imprensa.

Pois bem. Gushiken processou a “Veja”. O trabalho jurídico (árduo e competente – afinal, tratava-se de enfrentar a poderosa revista da família Civita) ficou por conta do escritório "Manesco, Ramires, Perez, Azevedo Marques Sociedade de Advogados" – com sede em São Paulo. Em primeira instância, a revista foi evidentemente derrotada. Mas a Justiça arbitrou uma indenização ridícula: 10 mil reais! Sim, uma revista que (supostamente) vende 1 milhão de exemplares por semana recebe a “punição” de pagar 10 mil reais a um cidadão ofendido de forma irresponsável. Reparem que este blogueiro, por exemplo, que usou uma metáfora humorística para se referir a certo diretor da Globo (afirmando que ele pratica “jornalismo pornográfico”), foi condenado em primeira instância a pagar 50 mil reais a Ali Kamel! E a “Veja” deveria pagar 10 mil… Piada.

Mas sigamos adiante na história de Gushiken. O ex-ministo recorreu ao Tribunal de Justiça de São Paulo. Antes que os desembargadores avaliassem a demanda, Gushiken morreu. Amigos mais próximos dizem que o estado de saúde dele (Gushiken lutava contra um câncer) se agravou por conta dos injustos ataques que sofreu nos últimos 8 anos.

Gushiken morreu, mas a ação seguiu. E os herdeiros agora acabam de colher nova vitória contra “Veja”. O TJ-SP mandou subir a indenização para 100 mil reais, e deu uma lição na revista publicada às margens fétidas da marginal.

O desembargador Antonio Vilenilson, em voto seguido pelos demais desembargadores da Nona Câmara de Direito Privado do TJ-SP (apelação cível número 9176355-91.2009.8.26.0000), afirmou:

A Veja dá a entender que não eram fantasiosas as contas no exterior. E não oferece um único indício digno de confiança. Infere, da identidade dos acusadores e dos interesses em jogo, a verdade do conteúdo do documento. A falácia é de doer na retina.”

Quanto aos valores, o TJ-SP sentenciou:

A ré abusou da liberdade de imprensa e ofendeu a honra do autor. Deve, por isso, indenizá-lo. No que diz com valores, R$ 10.000,00 não condizem com a inescusável imprudência e com o poderio econômico da revista. R$ 100.000,00 (cem mil reais) atendem melhor às circunstâncias concretas.

Chama atenção que a Justiça tenha levado 8 anos para julgar em segunda instância (portanto, há recursos possíveis ainda nos tribunais superiores) caso tão simples. O “Mensalão” – com 40 réus na fase inicial – foi julgado antes.

A Justiça é rápida para julgar pobres, pretos, petistas. E eventualmente é rápida também para punir blogueiros que se insurgem contra a velha mídia. Mas a Justiça é lenta para punir ricos, tucanos e empresas de mídia.

De toda forma, trata-se de vitória exemplar obtida por Gushiken – que era chamado pelos amigos mais próximos de “samurai”…

E falando em samurais, há um ditado oriental que diz mais ou menos o seguinte : submetido ao ataque de forças poderosas, o cidadão simples deve agir como o bambu - sob ventania intensa pode até se inclinar, mas jamais se quebra.

O “samurai” ganhou a batalha. Inclinou-se, ficou perto de quebrar-se. Mas está de pé novamente. E é de se perguntar, depois da sentença proferida: quem está morto mesmo? Gushiken ou o “jornalismo” apodrecido da revista ”Veja”?

Nunca antes na história deste país, o Judiciário adotou expressão tão precisa e elegante para descrever fenômeno tão abjeto: a revista da família Civita produz “falácias de doer na retina”. E não são poucas."

FONTE: escrito pelo jornalista Rodrigo Vianna em seu blog "Escrivinhador" (http://www.rodrigovianna.com.br/radar-da-midia/depois-de-morto-gushiken-derrota-veja-o-caso-das-falsas-contas-no-exterior.html#more-26542)


COMPLEMENTAÇÃO


Paulo Moreira Leite
GUSHIKEN E O PREÇO DE UMA TRIPINHA
"Indenização recebida pela familia de ex-ministro Gushiken não pagaria o menor anúncio oferecido pela revista que o atacou

A vitória da família de Luiz Gushiken numa ação contra a Veja é real mas precisa ser vista em sua devida medida.

Ao lado de outros ministros do governo Lula, em 2006 Gushiken foi acusado de possuir uma conta bancária num paraíso fiscal. Entrou com uma ação na Justiça e, num primeiro momento, foi humilhado com uma multa [à Veja] de R$ 10 000. Em outra ação, que acaba de chegar ao fim, multa foi elevada para R$ 100.000.

Mesmo reconhecendo que era um conflito inteiramente desigual, o que valoriza a importância do resultado, cabe registrar que são números bastante relativos.

Na última versão disponível na internet, o preço de anúncio de uma página na VEJA está tabelado em R$ 311 000 – três vezes mais do que a multa. Se for anúncio de 2/3 de página, o preço é R$ 286 000, ou 2,8 vezes. Se for de meia página, R$ 221 000. Se for 1/3, anúncio que nas redações é chamado de “tripinha”, R$ 152 000.

Ou seja: a multa não daria para pagar uma “tripinha.”

Não estamos falando de um episódio qualquer nem de uma “tripinha” do jornalismo.

Em maio de 2006, com uma reportagem de capa, a revista participou de uma operação que pode ser definida como um plano Cohen da década passada.

Publicou, como se pudessem ser verdadeiros, documentos falsos sobre contas de ministros do governo Lula em paraísos fiscais.

O Plano Cohen, nós sabemos, foi um documento forjado para justificar o golpe do Estado Novo, em 1937. Pretendia denunciar uma falsa conspiração comunista no país.

Os papéis sobre contas no exterior, que Veja admitiu ter recebido do banqueiro Daniel Dantas, alimentavam uma nuvem conspiratória, cuja finalidade era derrubar um governo eleito, produzindo o impeachment do governo Lula.

Mas as contas eram grosseiramente falsas, grotescas, sem um grama de credibilidade. A própria revista admitia, na reportagem, que não tinha condições de provar o que estava publicando.

O que era para ser um escândalo do governo transformou-se num escândalo do jornalismo, gerando uma onda de repúdio e indignação.

Gushiken entrou com um pedido de indenização contra a revista.

Durante vários anos, seus filhos enfrentaram aquela situação vergonhosa e inaceitável de ouvir acusações graves e falsas – como a própria Justiça reconheceu -- contra o pai. Apareceu até professor para fazer críticas em sala de aula, levianamente, sem saber do que estava falando – e a revista contribuiu para isso.

É curioso observar que, através daquele vexame, o Plano Cohen 2006 poderia ter ajudado o país a debater o trabalho da imprensa.

Mas o efeito foi inverso.

Em abril de 2009, o Supremo Tribunal Federal aceitou uma ação carregada no colo pelos meios de comunicação e aboliu a Lei de Imprensa. A partir de então, os descontentes caíram numa espécie de Estado Mínimo, devendo apresentar queixas e reclamações nos despachos do Direito Comum.

O argumento teórico era que o país precisava livrar-se de um “entulho” autoritário – e a Lei de Imprensa era um deles, já que fora criada em 1967, durante o regime militar.

A realidade era muito mais complicada. A lei deveria ser abolida. Mesmo sem autorizar a censura prévia, o que levou a ditadura a baixar o AI-5 quando quis controlar a imprensa de uma vez, criava instrumentos de tutela sobre o trabalho do jornalismo.

O problema é que também foram abolidos todos artigos que se referiam ao direito de resposta, eliminando-se a única garantia oferecida ao cidadão que se julgasse vítima de um erro – e também da má fé – do jornalismo.

Imagine quem ganhou e quem perdeu com isso.

Para dar um exemplo.

Em 1994, Leonel Brizola conquistou na Justiça um direito de resposta de 3 minutos, onde pode devolver, com pena afiadíssima, na voz de Cid Moreira, várias acusações que o Jornal Nacional lhe fizera.

Inesquecível, como você pode comprovar no Youtube.

Gushiken pediu o direito de resposta, em 2006. O caso levou três anos para ser julgado em primeira instância. A lei continuava em vigor – seria abolida meses depois – mas a solicitação foi rejeitada.

Se é difícil demonstrar, por qualquer critério objetivo, que o jornalismo brasileiro tenha ficado mais “livre” e menos “oprimido” com o fim da Lei de Imprensa, é fácil sustentar que se tornou menos responsável e mais leviano – para empregar palavras suaves, certo?

Mais do que multas, o direito de resposta sempre representou uma punição mais grave.

Permitia colocar a credibilidade do negócio em risco, funcionando como um estímulo poderoso para uma postura de maior responsabilidade.

Para fugir de punições legais, vários veículos publicavam voluntariamente correções sobre determinadas matérias. Ampliavam o espaço das cartas. Levavam as redações a serem mais cuidadosas em ouvir “o outro lado.”

Sem o direito de resposta, pagando multas irrisórias -- o valor original era R$ 10 000, convém não esquecer -- a maioria dos meios de comunicação passaram a exercer a "liberdade de expressão" – que é um direito de toda sociedade -- de modo arrogante e mesmo perverso.

É difícil sustentar que a imprensa brasileira tenha se tornado mais livre depois da decisão de 2009. Com certeza tornou-se pior."
FONTE da complementação: escrito por Paulo Moreira Leite, diretor da Sucursal da revista ISTOÉ em Brasília, é autor de "A Outra História do Mensalão". Foi correspondente em Paris e Washington e ocupou postos de direção na VEJA e na Época. Também escreveu "A Mulher que Era o General da Casa" (http://www.istoe.com.br/colunas-e-blogs/colunista/48_PAULO+MOREIRA+LEITE).

Nenhum comentário: