terça-feira, 7 de fevereiro de 2012

Emir Sader: A MARAVILHOSA REVOLUÇÃO HAITIANA


Por Emir Sader*, no blog da Boitempo

“Em 1789, a colônia francesa das Índias Ocidentais de São Domingos representava dois terços do comércio exterior da França e era o maior mercado individual para o tráfico negreiro europeu. Era parte integral da vida econômica de época, a maior colônia do mundo, o orgulho da França e a inveja de todas as outras nações imperialistas. A sua estrutura era sustentada pelo trabalho de meio milhão de escravos.

Em agosto de 1791, passados dois anos da Revolução Francesa e dos seus reflexos em São Domingos, os escravos se revoltaram. Em luta que se estendeu por 12 anos, eles derrotaram, por sua vez, os brancos locais e os soldados da monarquia francesa. Debelaram, também, uma invasão espanhola, uma expedição britânica com algo em torno de 60 mil homens e uma expedição francesa de semelhantes dimensões comandada pelo cunhado de Bonaparte. A derrota da expedição de Bonaparte, em 1803, resultou no estabelecimento do Estado negro do Haiti, que permanece até o dia de hoje.

“Essa foi a única revolta de escravos bem sucedida da História…”

Nem bem chegou por aqui, Cristóvão Colombo louvou rapidamente a Deus e saiu a procurar ouro na ilha de São Salvador. Os nativos, pacíficos e amistosos, lhe indicaram o Haiti, lugar rico do metal amarelo. Os espanhóis tomaram indígenas para sua proteção, introduziram o cristianismo, o trabalho forçado nas minas, o assassinato, o estupro, os cães de guarda, doenças desconhecidas e a fome forjada (pela destruição dos cultivos para matar os nativos de fome). “Esses e outros atributos das civilizações desenvolvidas reduziram a população nativa de estimadamente meio milhão, ou talvez um milhão, para sessenta mil em quinze anos.”

“Os negros” – dizia um relato de 1789 – “eram injustos, cruéis, bárbaros, semihumanos, traiçoeiros, pérfidos, ladrões, beberrões, arrogantes, preguiçosos, sujos sem-vergonhas, furiosamente ciumentos e covardes.” Essa visão servia para justificar o tratamento dado aos negros pelos colonizadores.

Porém, foram esses negros que lideraram a revolução haitiana de independência contra os franceses. O que eles fizeram foi simplesmente aplicar ao Haiti o que os franceses faziam no seu país. Mas caiu sobre eles a maior das violências – da França, da Espanha e da Inglaterra.

Revelando como a liberdade, a igualdade e a fraternidade não valiam para os povos não-europeus. A própria escravidão nunca tinha sido incluída nos ideais da revolução francesa. Ela se referia aos franceses, aos servos da gleba. O eurocentrismo que se instalava não olhava para além dos brancos, não incluía a suas vítimas, aquelas sobre quem recaia a exploração e a opressão que tornava possível que os europeus pudessem ser “livres”.

Depois de [os franceses] finalmente derrotados militarmente, os haitianos pagaram caro o preço da sua audácia. Foram vítimas privilegiadas dos colonizadores, espoliados, oprimidos, invadidos, humilhados. Estabeleceram-se dívidas milionárias, pendentes até hoje, com as quais o Haiti pagaria os danos causados aos colonizadores.

Em 1913, um novo capítulo da opressão se abateu sobre o Haiti: alegando a necessidade de saldar as dívidas e restabelecer a ordem, fuzileiros navais norte-americanos invadiram o país, o povo resistiu e a invasão foi frustrada. Porém, décadas mais tarde, depois de consolidar seu controle sobre a economia haitiana, os EUA colocaram no poder a dinastia Duvalier – primeiro François, o Papa Doc, depois seu filho, Jean-Claude, o Baby Doc, que governaram mediante uma ditadura de quase 30 anos (1957 a 1986)-, consolidando o Haiti como o país mais pobre do continente.

Quando, finalmente, uma rebelião popular derrubou o regime de Duvalier, depois de alguns anos de instabilidade, o padre Bertrand Aristide, líder popular, ligado à teologia da libertação, foi eleito presidente em 1990. Tinha as melhores condições para conduzir o Haiti para um regime democrático. No entanto, no ano seguinte, foi derrubado por um golpe militar de oficiais ligados ao velho regime duvalierista.

Aristide se refugiou nos EUA e voltou ao país conduzido pelas tropas norte-americanas, para completar seu mandato, em 1994. Em 1996, conseguiu eleger um político vinculado a ele como presidente e voltou a esse cargo em 2001.

Mas o Aristide que retornou dos EUA já era diferente. Colocou em prática políticas neoliberais, usou a repressão contra movimentos populares, o país foi invadido pelo tráfico de drogas e por bandas violentas. Os EUA e a França se aproveitaram da desordem instalada no país e da incapacidade do governo para se impor (Aristide havia terminado com as FFAA, alegando seu caráter duvalieristas, sem colocar no lugar outras forças militares), para invadir o país e depor Aristide.

Diante dessa situação, esses dois países apelaram a que forças militares latino-americanas os substituíssem na ocupação do Haiti. Sob a direção do Brasil, tropas de vários países do continente – Argentina, Bolívia, Chile, Equador, Guatemala, Paraguai, Peru e Uruguai, a que se somaram tropas de países de outros continentes – passaram a compor a Missão da ONU no Haiti desde o golpe militar.


Não bastasse tudo isso, o Haiti ainda sofreu terrível terremoto há dois anos, cujo epicentro foi no centro de Porto Príncipe. O resultado desse conjunto de fatores é catastrófico. Devastado em termos naturais, com suas terras sem condições de serem utilizadas pela sua deterioração ambiental, com parte importante da sua população no exílio – principalmente nos EUA e no Canadá -, com o Estado destruído, com países que chegam para dilapidar ainda mais o que resta de empresas estatais, com um Fundo de recursos arrecadados sob a presidência inepta do Príncipe Charles e de Bill Clinton – o Haiti continua vivendo na desesperança.

Um dos livros mais lindos que eu li é “Os jacobinos negros”, de C.L.R. James, que conta uma das mais extraordinárias epopeias vividas pelos povos latino-americanos – a revolução haitiana.”

FONTE: escrito por Emir Sader, no blog da Editora Boitempo. Transcrito no portal “Vermelho”  (http://www.vermelho.org.br/noticia.php?id_noticia=174600&id_secao=7) [Imagens do Google adicionadas por este blog ‘democracia&política’].

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