domingo, 25 de setembro de 2011

POR UMA ESCOLA PÚBLICA REALMENTE DEMOCRÁTICA


Por Rodolpho Motta Lima

“Eu pretendia mudar de assunto, fugindo às coisas do ensino e da Educação. Afinal, no mundo e no país, há muitos acontecimentos que são um convite à opinião e ao debate. Motivado, porém, pelos recentes dados disponibilizados pelo ENEM, continuo no tema.

Disraeli, primeiro-ministro britânico na segunda metade do século XIX, disse, certa vez, que "há três espécies de mentiras: mentiras, mentiras deslavadas e estatísticas".

Lembrei-me disso a propósito do tratamento que se está dando aos referidos dados, em função de diferentes pontos de vista e interesses. Por um lado , o Governo, sem deixar de reconhecer os problemas da área, destaca a pequena melhoria que os números traduzem e assevera que se encontram dentro das metas previstas no Plano Nacional de Educação (PNE). Por outro lado, a grande mídia –como sempre, destituída da isenção que a deveria caracterizar– aproveita os resultados para dele retirar apenas as ilações negativas, sempre com os objetivos nada disfarçados de demonizar o Governo e suas ações.

Penso que a oposição midiática, no afã de construir suas críticas, deliberadamente mistura laranjas e bananas ao promover comparações inadequadas e manipula os números “selecionando” o que convém aos seus propósitos. Bem ao gosto de Disraeli. Apesar disso, deve-se reconhecer que o que foi divulgado pelo MEC –com transparência, diga-se, digna de aplausos– traduz, no geral, uma indesejável realidade, que nos permite aferir a quantas anda o ensino entre nós, particularmente o ensino médio, de que tratam os dados do ENEM.

Ao considerar auspiciosa o que define como pequena melhora, o MEC justifica-se argumentando que, em Educação, nada se constrói da noite para o dia. Isso é certo, e devemos reconhecer que os governos do PT têm-se mostrado preocupados com a área, o que se percebe em diversos sinais: a criação expressiva de escolas técnicas, o aumento do número de Universidades federais, o projeto de disseminação de creches, as possibilidades abertas pelo Pro-Uni , o fortalecimento e crescimento do próprio ENEM e tantas outra medidas que merecem aplausos. Mas não é menos correto afirmar-se que, em um país como o nosso, que ainda convive com gritantes desníveis sociais, a educação é como a fome: não pode esperar.

É claro –e os opositores convenientemente se esquecem disso– que o processo de debilidade do nosso sistema educacional não é responsabilidade dos últimos governos (é interessante como se mencionam sempre, na estatística, os “últimos nove anos”), mas vem sendo urdido paulatinamente, insidiosamente, com o beneplácito das elites nacionais. A classe média, devidamente cooptada, a partir do momento em que conseguiu matricular seus filhos na escola particular, desinteressou-se pelos destinos da escola pública (como fez com a saúde pública). Sem reações consistentes, o ensino público, voltado só para as camadas populares, foi entregue à sua própria sorte por governos ideologicamente comprometidos com interesses contrários aos do povo. A tese do estado mínimo, tão cara aos privilegiados, tomou conta também do campo da educação.

Houve, é claro, aqui e ali, dignas exceções. Leonel Brizola, por exemplo –amparado na teoria e na prática por Darcy Ribeiro– tentou encaminhar uma solução: os CIEPs , com sua filosofia de inserção, seu regime de tempo integral, seu compromisso absoluto com as necessidades várias das crianças socialmente excluídas. Mas a visão tacanha de alguns –com forte participação, então, da classe média– considerou absurdo o investimento que se fazia e dinamitou a idéia de colégios de excelência para o povo. Fruto de posturas egoístas que se multiplicaram, o que mais se ouvia, então, era que não tinham sentido aqueles gastos em poucos colégios, quando se podia construir uma quantidade bem maior com o mesmo dispêndio. Mas quem argumentava assim sabia muito bem da importância da Educação de qualidade e punha seus filhos em excelentes colégios particulares, pagando caríssimo por isso...

O resultado está aí, acentuado ao longo do tempo, com a abismal distância que os números do ENEM revelam. E embora, hoje, se percebam algumas melhorias no panorama, a verdade é que a escola pública não cumpre a sua missão democrática de propiciar a redenção dos desfavorecidos, inibindo a continuidade efetiva no campo intelectual e limitando as oportunidades no campo do trabalho. Cristalizando as diferenças, a nossa escola pública, com as exceções de praxe que apenas confirmam a regra (Pedro II, colégios militares, escolas técnicas, CAPs), acaba por constituir-se um antidemocrático instrumento a serviço da exclusão, matando no nascedouro as vocações e as possibilidades dos menos favorecidos.

O ENEM pôs à mostra uma face do nosso problema educacional. Os dados divulgados, antes de servirem de base a oposicionismos inconsistentes e hipócritas de quem nunca atuou nem pretende atuar no sentido de corrigir as distorções, devem ser um convite para que as autênticas forças sociais se unam para enfrentar e vencer os obstáculos. Temos um Governo que se mostra interessado e algo me diz que o recente surgimento de uma nova classe média –recém-egressa da pobreza e, por isso, diferente daquela que dormiu e ainda dorme no berço esplêndido de seus privilégios– pode vir a ser decisivo para a mudança de rumos que se impõe. E não apenas para, no final, modificar rankings nem sempre confiáveis, mas para reivindicar e impor outra visão educacional que privilegie os valores da cidadania.

Como tentei mostrar em textos anteriores, há muito a fazer na Educação, além de aferir conhecimentos específicos desta ou daquela disciplina. Sabemos que investimentos estão sendo feitos, metas estão sendo alcançadas, mas o que há a fazer passa por ações efetivas de diversos atores que, na sociedade, além do Governo, devem estabelecer compromissos com a Educação. Famílias, colégios e comunidades organizadas devem interagir no sentido de que se processe, de forma decisiva, o pagamento dessa imensa dívida social acumulada por força de um criminoso descaso de décadas.”

FONTE: escrito por Rodolpho Motta Lima, advogado formado pela UFRJ-RJ (antiga Universidade de Brasil) e professor de Língua Portuguesa do Rio de Janeiro, formado pela UERJ, com atividade em diversas instituições do Rio de Janeiro. Com militância política nos anos da ditadura, particularmente no movimento estudantil. Funcionário aposentado do Banco do Brasil. Artigo publicado no site “Direto da Redação”  (http://www.diretodaredacao.com/noticia/por-uma-escola-publica-realmente-democratica).

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