quarta-feira, 21 de setembro de 2011

A GRANDE ENTREVISTA DE JACQUELINE KENNEDY

“A imagem chique, até meio distraída, era a armadura de uma mulher determinada e sofrida, que sabia de tudo”

Por Elio Gaspari

“Saiu nos Estados Unidos o pacote de sete longas entrevistas que Jacqueline Kennedy deu ao historiador Arthur Schlesinger Jr. em 1964, poucos meses depois do assassinato de seu marido. É um retrato de uma grande mulher, dona de vontade de ferro e imbuída de raro sentido da história, escondida atrás de delicada aparência de refinada futilidade. Lia melhor que o marido, guardava até rabiscos e tinha um fino senso de humor: "'Primeira-dama' parece nome de cavalo de corrida".

Até sua morte, em 1994, aos 65 anos, Jackie deu apenas três entrevistas. Na primeira, dias depois do assassinato de Kennedy, criou o mito de "Camelot", a lenda de cavalaria medieval semelhante, em sonho, ao governo de seu marido. A segunda saiu do cofre agora. A terceira somente será conhecida em 2067 [por censura (103 anos) do governo dos EUA].

Jackie sofrera como poucos. O pai (que ela adorava) tomou um porre e não apareceu na cerimônia do seu casamento. Morrera-lhe um filho com poucos dias de vida e, em Dallas, teve os miolos do marido espalhados no vestido.

Nas sete conversas de 1964, Jacqueline falou para o século seguinte. John Kennedy não tinha defeitos e seu papel fora servi-lo. Uma Amélia chique. Ao contrário do que se esperava, a cama da Casa Branca ficou fora da pauta. Há apenas uma breve referência a um adversário político que se orgulhava de jogar squash e fazer sexo uma vez por semana, numa insinuação sobre a saúde débil de Kennedy. Ela contou o caso e gargalhou junto com Schlesinger ("Jacqueline Kennedy - Historic Conversations on Life with John F. Kennedy" vem junto com seis CDs. O pacote está na Amazon e, nos Estados Unidos, o e-book pode ser baixado por US$ 9,99. Ouvir Jackie com sua adorável e afetada língua presa é um bálsamo para quem convive com a sonoplastia de Lula.)

Kennedy chorou nos dias seguintes à fracassada invasão de Cuba, em 1961, quando 2.500 exilados da força expedicionária foram capturados pelas tropas castristas. Sua descrição dos prisioneiros quando retornaram, trocados por tratores, mostra a alma da senhora: "Eles tinham uns rostos maravilhosos, como os de El Greco. Muito magros".

Jacqueline conta a crise dos mísseis soviéticos colocados em Cuba com alguma emoção. Nunca o mundo esteve tão perto da Terceira Guerra, mas Kennedy só lhe contou o rolo quatro dias depois de seu início. Ele não sugeriu que deixasse Washington, mas ela pediu para ficar (em Moscou, alguns familiares da Nomeklatura viajaram.)

A moça criada na Nova Inglaterra, lapidada na França e casada numa família de milionários primitivos lustrou a biografia liberal de Kennedy, mas tropeçou em dois personagens. E que personagens: Franklin Roosevelt e Martin Luther King.

A respeito de Roosevelt, relembrou: "Ele [Kennedy] às vezes o considerava um charlatão -charlatão é uma palavra injusta, e você entende o que estou dizendo, um pouco ‘poseur’, esperto."

Com Martin Luther King a coisa piora: "Ele me contou de uma gravação do FBI de quando King esteve aqui para a ‘Marcha da Liberdade’ [a do discurso do "eu tive um sonho"]. (...) Ligava para umas garotas, armando uma festa de homens e mulheres, uma orgia no hotel. (...) Eu não posso ver retratos dele sem pensar, sabe, aquele homem era horrível."

(Kennedy, cuja cama já fora grampeada, tentou intimidar King com a "vigilância" do FBI, mas ele se fez de bobo.)

No dia 16 de outubro, o companheiro Obama inaugurará o memorial de King em Washington, onde há monumentos a Thomas Jefferson, Abraham Lincoln e Roosevelt.

A CONTA DO GOLPE FOI PARA LYNDON JOHNSON

A maestria de Jacqueline Kennedy na construção e na propagação do mito de seu marido pode ser comprovada numa referência que faz ao Brasil em sua entrevista.

A certa altura, ela diz que Kennedy achava que João Goulart era "falso" e "ladrão". Nessa conversa, ocorrida em junho de 1964, ela recorda que "os Estados Unidos reconheceram a Junta do Brasil muito rapidamente. (...) Uma desilusão. (...) Jack nunca teria feito isso".

A família e a equipe de Kennedy desprezavam o vice-presidente Lyndon Johnson e, depois de Dallas, trataram-no como se fosse o primeiro-ministro da União Soviética, mas essa conta não é dele. É de "Jack".

A carta do golpe militar no Brasil foi colocada no baralho no dia 30 de julho de 1962, durante uma reunião do presidente Kennedy com o embaixador americano no Brasil, Lincoln Gordon. (Nesse dia, ele começou a gravar suas conversas no Salão Oval, inclusive essa.)

Em setembro, o Departamento de Estado aprontou um documento intitulado "Proposta de Política de Curto Prazo: Brasil". Ele propõe o "rápido reconhecimento e apoio a qualquer regime que os brasileiros instalem, substituindo Goulart". (Os EUA reconheceram o novo governo no dia 2 de abril, enquanto João Goulart ainda estava no Brasil.)

Nos últimos meses do governo Goulart, Arthur Schlesinger, que trabalhara com Kennedy, escreveu o seguinte: "Chegará o momento em que teremos de perguntar se é do nosso interesse que Goulart continue a cambalear até o fim do seu mandato, em 1965" (ou se) ‘fosse 'aposentado' antes da data marcada’.”

FONTE: escrito por Elio Gaspari e publicado na Folha de São Paulo  (http://www1.folha.uol.com.br/fsp/poder/po1809201108.htm) [imagem do Google e trecho entre colchetes adicionados por este blog ‘democracia&política’].

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