segunda-feira, 28 de fevereiro de 2011

ÍNTEGRA DA ENTREVISTA DE GUIDO MANTEGA PARA A “FOLHA”

Em seu gabinete em Brasília, Guido Mantega diz que movimentos do novo governo não significam virada na economia

“PRIMEIRAS AÇÕES DE DILMA PARECEM GOVERNO 'LULA 3', DIZ MANTEGA

Cortes, aumento de juros, reajuste contido do salário mínimo. O ministro da Fazenda, Guido Mantega, diz que esses primeiros movimentos do novo governo não significam virada na economia, nem choque ortodoxo.

Para ele, há apenas continuidade: "o governo Dilma não é nem parecido nem com Lula 1 nem com Lula 2. É parecido com Lula 3".

Mantega diz, porém, que é hora de um recuo do Estado. As taxas de juros do BNDES vão subir e o ministro espera que as empresas busquem financiamento privado.

O titular da Fazenda afirma que não está puxando o freio de mão da economia, mas acrescenta que o Brasil ainda não tem condições de crescer 7,5% por conta dos gargalos estruturais.

--Folha - Quais as diferenças entre os governos Dilma e Lula?

Guido Mantega -- Tem muito mais semelhanças do que diferenças, por que é um governo de continuidade. Embora os personagens sejam diferentes, cada um tenha as suas peculiaridades, vamos dar continuidade à política de desenvolvimento iniciada no governo Lula. Nossa missão é consolidar o desenvolvimento que foi iniciado no governo Lula. Significa que a estratégia econômica bem-sucedida que foi praticada nesse período continua. Então este governo possui a mesma estratégia econômica. É bom deixar claro, porque tem gente aí fazendo confusão. É a mesma estratégia, porém aplicada a um momento diferente.

--E o que está diferente? Muitos relacionam o salário mínimo, o aumento de juros e o corte no Orçamento a uma virada para um aperto na economia, contrária à toada que vinha até então.

Não tem virada nenhuma, é um equívoco achar que existe mudança na estratégia econômica. O que acontece é que, num período anterior, nós passamos por fases diferentes. Num período de crise, nós combatemos a crise. Então é a mesma estratégia de desenvolvimento. Isso tem que ficar claro. A prioridade máxima era implantar o desenvolvimento, e ele foi implantado. O Brasil já tem crescimento diferente do que tinha no passado.

--Mas por que precisa frear agora?

Acontece que nós passamos por dois anos de recuperação da crise, tivemos um ano com PIB quase negativo, em 2009, e em 2010, um ano de recuperação, que nós tivemos que usar todas as armas que tinha o Estado para consolidar essa recuperação. O que não é uma questão trivial, porque a maior parte dos países do mundo falhou nessa recuperação, até agora não se recuperou.

Aqui no Brasil, a gente acaba simplificando, minimizando que houve uma crise. Muitos colegas seus até esquecem que houve uma crise e dizem: ah, o governo ficou gastando durante dois anos. Mas que história é essa? Nós tivemos a maior crise da história do capitalismo atual e nós tivemos que enfrentá-la e, para isso, usamos todas as armas que tínhamos. Felizmente tínhamos muitas armas. O Estado brasileiro tinha muitas armas. Talvez até mais que o Estado americano. E nós as usamos nesse período.

Então nós implantamos vários estímulos à economia que implicaram gastos maiores do governo. Implicaram subsídios, desonerações, tudo aquilo que nós fizemos. Quando a economia começou a dar sinais de recuperação, nós já começamos a eliminar os estímulos. Se você olhar o primeiro trimestre de 2010, eu já estava tirando a desoneração do IPI, já estava caindo. Quando a economia deu sinais de solidez, de que ela estava recuperada, nós tínhamos voltado àquele patamar de 2007/2008. Quando o Brasil já estava numa trajetória de desenvolvimento sustentado, nós passamos a retirar os estímulos. Isso se chama política anticíclica. Eu repito isso à exaustão, mas parece que alguns não entendem.

--Mas agora a questão é frear a economia. Por quê?

Justamente. Porque como a economia já adquiriu o seu dinamismo próprio, então o Estado pode recuar. Isso é clássico, está em livro-texto, não estamos inventando nada.

-- Mas não é só um recuo. O salário mínimo, por exemplo...

Este ano nós estamos acabando de eliminar todos os estímulos que foram introduzidos ao longo desse tempo, o que significa diminuir o gasto público, que tinha aumentado mais do que o normal, e reduzir despesas de um modo geral, reduzir subsídios, o BNDES vai subir as taxas de juros, que elas tinham baixado para estimular a economia, com subsídio do governo federal. Porque nós equalizamos, significa que pagamos a diferença entre o custo deles e as taxas de mercado. Agora nós estamos recuando nisso. É absolutamente normal, porque a economia já está sólida. Como nós temos segurança de ela vai seguir, então nós estamos reduzindo as despesas. O salário mínimo não é uma redução de despesa, é o cumprimento de um acordo que foi firmado no passado e que nós queremos cumprir. E que tem que valer para os dias bons e para os dias ruins também.

--Sobre o salário mínimo, a presidente durante a campanha e no seu discurso de posse enfatizou muito a questão do combate à miséria como a prioridade zero desse governo. Essa decisão de arrochar o salário mínimo, pois ele não teve praticamente nenhum ganho real, não vai de encontro a esse objetivo maior de combater a miséria?

Não sei em que país estão arrochando o salário mínimo, mas certamente não é no Brasil. Porque nós estamos praticando uma política de valorização do salário mínimo, que teve sua maior elevação no período do governo Lula, nos dois mandatos, e o que nós estamos é afirmando a política de valorização do salário mínimo. Não tem arrocho nenhum. O que tem é uma regra que foi estabelecida e que nós queremos cumprir. Os R$ 545,00 são resultado dessa regra. Não tem arrocho nenhum. Nós estamos corrigindo a inflação, aliás até um pouco acima da inflação média, que é 6,3%. Significa que ele mantém o poder aquisitivo.

Agora, essa política de salário mínimo tem que ser vista no bojo das políticas de desenvolvimento do governo. Ela não é única política. Ela faz parte de várias políticas que aumentaram o emprego no país e o salário médio de toda a população. Porque o que o governo queria não era só aumentar o salário mínimo, mas criar condições para que os salários subissem no país, como de fato subiram. Agora é muito importante que a gente estabeleça regras e acordos e cumpra esses acordos. Uma das características do governo Lula e que certamente será mantida no governo Dilma é o cumprimento de acordos, é o cumprimento de contratos. Nunca rompemos contratos, acordos, seja lá com quem for, seja com os empresários, seja com os trabalhadores. Aqui nós estamos cumprindo um acordo com os trabalhadores.

--Mas os trabalhadores reivindicavam um reajuste maior. O salário mínimo hoje é a metade do que era em 1940.

Acho que é função dos trabalhadores reivindicar cada vez mais. Até a oposição começou a reivindicar algo que nunca deu quando teve a oportunidade de dar. Acho curioso essas manifestações de dar R$ 600. Então por que não deram quando estavam no governo? E não deram. Aí de repente tem espaço fiscal. Então nós somos muito coerentes. Nós mantemos a nossa linha de coerência. Foi feito um acordo, uma modalidade que beneficia os trabalhadores, mas também dá um horizonte de despesa, porque nós não podemos trabalhar com a despesa ao sabor de pressões. Isso é muito importante. Nós somos um governo que é responsável. Assim como nós queremos o crescimento, nós temos que olhar também para a solidez fiscal.

Aliás, nós zelamos pela solidez fiscal ao longo de todo esse período, desde 2003 até 2010 zelamos. E o sinal que nós estamos dando é de que nós continuaremos a zelar pela solidez fiscal. É claro que quando teve a crise, nós tivemos que diminuir o [superávit] primário, como o mundo inteiro fez. E agora nós vamos voltar ao que era antes e para isso nós temos que controlar certas despesas. O salário mínimo impacta a Previdência. Então, se você exagerar na dose...

Se nós fizéssemos o que a oposição queria, aumentar para R$ 600, nós teríamos um gasto adicional de R$ 19 bilhões este ano. Eu acho que aí seria uma irresponsabilidade fiscal. Não dá para acrescentar uma despesa de R$ 19 bilhões no momento em que nós estamos reduzindo despesas.

--E sobre os cortes? Há quem diga que os cortes também vão de encontro a essa política de desenvolvimento. Os cortes no orçamento vão atingir os investimentos? Os cortes no custeio geralmente afetam os mais pobres.

Essa redução dos gastos no setor público é porque nós achamos que os gastos do setor privado, a demanda do setor privado é suficiente para manter a economia num ritmo de crescimento satisfatório em torno de 5%. Essa é meta, a previsão do governo, manter 5%. Então isso não tem nenhuma semelhança com políticas feitas no passado, de ajuste fiscal, daqueles ajustes que derrubam a economia.

--Qual a diferença?

A diferença é que nós agora estamos tirando o impulso adicional que foi dado. Mas nós estamos mantendo os investimentos. Nós estamos mantendo o estímulo a investimento privado, o que é muito importante.

--Mas o Sr. não disse que vai aumentar a taxa de juros no BNDES? Isso não vai ter impacto no investimento?

Mas nós acabamos de fazer medidas desonerando debêntures do setor privado no final do ano passado. Fizemos várias medidas.

--Mas a economia vai encolher e isso não é um estímulo a investimento.

A economia não vai encolher. Quem fala isso não entendeu.

--A economia vai reduzir o ritmo de crescimento.

A economia está crescendo desde 2004, o que é algo inédito. Ela teve um decréscimo na crise, um ano apenas. Ela decresceu 0,6%. Futuramente isso vai ser revisado, acredito até que tenha não sido tudo isso. E ela voltou a crescer em 2010. E ela continuará. Alcançamos um outro patamar de crescimento. O Brasil é hoje um país de 4,5%, 5% de crescimento.

--O Brasil nunca poderá ser como a China e crescer 10%, 12%?

Não, porque..

--Por que não?

Não. Não sei se nós vamos poder ser como a China. É que a China é um país completamente diferente, num outro nível de desenvolvimento. Metade da China é agrária, o Brasil já não é.

--Mas para atacar a pobreza não deveria haver mais investimento?

O Brasil em 2002 estava entre os países de crescimento moderado, Estados Unidos e Europa crescendo pouco. A Ásia já despontava como uma potência emergente. Nós colocamos o Brasil na liderança do crescimento.

--Depois da China e da Índia.

Hoje o Brasil é um dos países que tem liderança. O crescimento de 5% este ano será o terceiro ou quarto entre os países emergentes.

--Por que o Sr. acha que não dá para continuar no ritmo de 7,5% e tem que reduzir?

7,5% foi um crescimento excepcional que se sucedeu a um ano com zero de crescimento. Você tem que olhar a média. O Brasil ainda não tem condições de crescer a 7,5%, ele terá. Porque você pode ter pontos de estrangulamento. Se você continuar crescendo a 7,5%, sem ter passado por uma crise. Ou seja, quando deu a crise você teve capacidade ociosa etc e tal. Mas, se você continuar crescendo exageradamente, você tem falta de mão de obra, falta de infraestrutura. Tudo isso nós não temos no Brasil, é bom deixar claro.

Agora, se a gente insistir, se a gente deixasse nessa toada aí, nós poderíamos nos defrontar com pontos de estrangulamento. Então, como nós trabalhamos para um crescimento sustentado equilibrado, nós moderamos o crescimento, não derrubamos o crescimento. Essa é a diferença. Então não é um ajuste fiscal clássico, conservador, igual àquele que você já viu no Brasil várias vezes. É um ajuste que mantém os investimentos, que mantém a economia crescendo, mantém o estímulo ao setor privado. Para nós, o mais importante é o investimento total do país. É bom deixar claro. O Estado só investe onde o setor privado não tem condições. Então, nós tivemos que aumentar investimento, principalmente em infraestrutura para não deixar criar gargalo. Energia elétrica, meios de transporte etc. Nós tivemos que aumentar porque era muito baixo no Brasil.

Agora, se o setor privado puder cumprir essa função, nós ficamos agradecidos. E o Estado vai cuidar de outras questões. O importante é ter a garantia de que vai haver o investimento. No ano passado o crescimento do investimento no Brasil cresceu mais do que na China. O crescimento do investimento sobre o ano anterior foi mais de 20% cresceu mais do que na China, que cresceu uns 13%. É claro que o investimento na China como proporção do PIB é maior do que o do Brasil. Investimento total, público e privado. Para mim não interessa se é público ou privado. Não interessa a cor do gato, interessa é que ele consiga comer o rato. Nós queremos comer todos os ratos. O investimento vai continuar crescendo no Brasil. O governo continuará criando as condições para o investimento e vai manter o investimento público. Só que ele não vai crescer tanto quanto cresceu em 2010 em relação a 2009.

Essa é uma diferença. Ele não vai crescer tanto porque não precisa crescer tanto. E porque poderia comprometer as contas públicas se crescesse mais. Essa é a arte da política econômica: crescer com equilíbrio. Se você exagera no investimento, mesmo que seja público, pode criar um problema fiscal e nós não queremos. Então nós vamos até onde não se cria um problema fiscal. E seguindo a trajetória de contas sólidas. O Brasil é um dos países que tem as contas mais sólidas do mundo. O nosso déficit nominal é um dos menores do G20. É o segundo ou o terceiro menor do G20. Melhor que o nosso, só o da Arábia Saudita, mas...

--Mas a inflação também um temor nesse quadro? Quanto o Sr. está preocupado com a inflação?

A política antiinflacionária deste governo é exatamente igual à do governo anterior, que era nosso mesmo. Ou seja: não vamos descurar da inflação em nenhum momento. A inflação é ruim porque prejudica principalmente os trabalhadores e o nosso governo procurou beneficiar fundamentalmente os trabalhadores brasileiros.

--Embora outros setores tenham se beneficiado. Acabaram de sair os dados sobre os lucros dos bancos...

Esse é o sucesso do nosso governo. Nós conseguimos beneficiar a população como um todo. Mais os pobres e menos os banqueiros. Mas nós beneficiamos pobres e banqueiros. Não é uma beleza? Outro dia eu vi um desses analistas aí, que cobra uma fortuna para fazer aquelas análises bastante discutíveis, que dizia: olha, o governo está errado, porque ele estimulou o mercado interno, deu crédito e deu crédito para os banqueiros, deu mais crédito para a indústria. Então ele achava aquilo incompatível. Não, é uma inovação. Nós conseguimos beneficiar toda a sociedade, porque quando o país cresce bastante em geral todo mundo se beneficia. Só que se você olhar as análises do Marcelo Neri, o setor cuja renda mais subiu foi o setor de baixa renda.

--Mas aí o Sr. está falando só da renda do salário, o que é uma coisa limitada.

É, mas é alguma coisa. Antigamente era assim: concentrava a renda do trabalho e ainda tinha renda do capital.

--Mas a percentagem da renda do trabalho na massa total diminuiu.

Mas quem cria emprego no sistema capitalista são as empresas, são investimentos. Então não dá para fazer esse milagre de gerar emprego e ao mesmo tempo expropriar os empresários. Eu nunca vi, não conheço.

--Mas o papel do governo é justamente trabalhar nessa composição.

E nós não fomos bem-sucedidos?

--Eu faço perguntas. Esse início do governo Dilma está mais parecido com o Lula 1, que foi de aperto? O governo começou aumentando juro, não aumentando tanto o salário mínimo, fazendo cortes. Isso tudo não é, de alguma forma, uma transferência dos mais pobres para os mais ricos, já que o superávit que se busca é para pagar os juros?

O governo Dilma não é nem parecido nem com Lula 1 nem com Lula 2. É parecido com Lula 3. É um governo que tem condições totalmente diferentes do Lula 1 porque naquele momento nós encontramos um país em condições econômicas muito complicadas. Não tinha reserva, 17 bilhões de dólares de reserva própria, não tinha dinamismo, o crescimento era pífio, o país era dependente, dependia dos favores do fundo monetário. A economia estava bastante desarticulada naquele período, estava em crise. Então, a resposta econômica que nós demos foi para enfrentar aquela situação. A situação hoje é completamente diferente. Então não tem paralelo. Se você quiser um paralelo, é mais parecido com Lula 2, porque já tínhamos resolvido esses problemas que nós encontramos, saneado a economia, controlado a inflação e aí passou a apostar mais no desenvolvimento.

--Mas esse freio de mão que está sendo puxado...

Então Dilma 1 é parecido com Lula 2 porque não está sendo puxado o freio de mão, isso é um engano. É um engano. Não está sendo puxado. Nós estamos trabalhando para um crescimento de 4,5%, 5% este ano. O Brasil, se crescer 4,5%, 5% ele terá tido um crescimento historicamente ímpar, porque se você pegar o período anterior ao nosso era 2,7% de média. Então 5% está ótimo. Se você olhar as projeções do PAC nós nunca colocamos mais do que 5,5%. Porque a gente acha melhor ir crescendo de forma sustentável. As pessoas resistem a essa ideia do anticíclico, que nós implantamos no Brasil, que é uma modalidade de gestão fiscal e econômica que eu já tinha implantado em 2007 e 2008. Vocês não perceberam.

Mas em 2008, por exemplo, a economia já estava aquecendo. E a economia é assim. A economia não é ser inerte, que se move de acordo com os desejos do governo. É um ser vivo, dinâmico, que não responde exatamente 100%. Então, em 2007 nós demos vários estímulos para a economia. Estimulamos o investimento, aumentamos o crédito, a economia reagiu bem. Em 2007 nós crescemos 6,1%. Em 2008 estávamos crescendo uns 6,5%. Aí veio a crise e crescemos menos. Mas quando começou 2008 nós achamos a economia estava tendendo a aquecer bastante. Porque, diga-se de passagem, a economia brasileira é muito dinâmica, ao contrário de outros países, europeus etc., reage bem a estímulos. Então nós começamos a segurar um pouco os estímulos.

Eu aumentei o IOF para encarecer um pouco o crédito, o BC subiu taxas de juros etc., para dar uma moderada na economia. Essa é a função do governo, fazer ajustes na economia. A economia não é uma máquina, não é um carro que você vira a direção e você vai. É uma máquina complexa que tem que ser monitorada e tem que passar por ajuste o tempo todo. Assim, se ameaça subir a inflação, se sobe o juro... Nós fazemos essa operação. O ano em que a economia acelera um pouco mais, depois a gente desacelera, se ela desacelerar a gente acelera, esse é o papel do governo, de modo a termos uma estabilidade de crescimento razoável.

Nós temos apresentado as projeções: 5% em 2011, 5,5% em 2012, 6,5% em 2013 e 6,5% em 2014. Então a gente vai ganhando capacidade de crescimento. Com mais investimento, a capacidade da oferta aumenta, a produtividade aumenta, nesse meio-tempo você vai aumentando a oferta de energia elétrica, os portos, a infraestrutura etc., não cria gargalos. O segredo é não deixar criar gargalos na economia, para que ela possa crescer de forma harmoniosa e sustentável. E é isso que nós estamos fazendo agora. Então nós vamos continuar o crescimento. O emprego vai continuar crescendo no país, talvez não àquela taxa do ano passado, porque ela foi muito forte.

--A inflação está preocupando?

A inflação é uma preocupação permanente aqui no Brasil. Desde que o Maílson da Nóbrega deixou a inflação em 89%, a gente se preocupa. Mas ela está sob controle.

--Qual a origem da inflação neste momento? É essa especulação com as commodities?

Com certeza. Alimentação e bebidas foi o que mais subiu. Há uma combinação de fatores. Você teve também um aumento da demanda mundial por alimentos. A China, a Índia, o próprio Brasil estão comendo mais. O Brasil não tem falta de nenhum desses produtos, por isso não é uma questão de oferta. O Brasil hoje é o país agrícola mais produtivo do mundo. A gente aumenta a oferta aqui com tranquilidade. Só que o preço não é fixado aqui, O preço do trigo é fixado em Nova York, Chicago, Hong Kong, no mercado de derivativos, no mercado futuro.

Nós não estamos reclamando porque nós estamos faturando também com isso. As commodities agrícolas subiram 40% em 2010. Isso vai para preço de todo mundo. Os metais também subiram, até um pouco mais, acho que 46%. O petróleo também acompanhou um pouco isso. Agora é um momento especial, que pode não se prolongar. Mas não há falta de petróleo. Em 2008 havia um crescimento da economia global e a questão era de demanda. Agora não é questão de demanda aquecida. Aqui tem oferta. O problema é de abastecimento, conseguir o abastecimento. O principal fator de elevação da inflação mundial são as várias commodities, principalmente alimentos.

Mas não é só isso. Todo o mês de janeiro nós temos dois preços que se elevam: escola e transporte. A boa notícia é que já está caindo. O que puxou para baixo? Alimentos. O que puxou para cima? Transporte e educação. Tem um quarto fator que é o sistema terciário, o comércio, que está aquecido, é verdade. A economia com 7,5% dá uma aquecida. O cuidado que nós temos que ter é não deixar que haja uma difusão da inflação, que vai reverter.

--Se a inflação está sob controle por que é preciso cortar?

Eu falei que tem que cortar por causa da inflação?

--Não, não falou. Mas existe a visão de que como a inflação estava preocupando, então tem que cortar.

A inflação no Brasil está mais controlada do que na maioria dos outros países. A inflação brasileira é menos volátil do que a média dos países. Isso é uma coisa nova que você podia publicar, porque coisas boas ninguém publica. Índia está com inflação mais alta que o Brasil e mais volátil. A volatividade é ruim para a economia. A inflação é mais controlada no Brasil do que nos outros países. O Brasil está abaixo da média variação inflacionária do mundo. Há um problema mundial. Como a economia brasileira começou o ano passado bastante entusiasmada, procuramos acalmar e tomamos várias medidas. Ao longo de 2010, eu vim eliminando quase todos os estímulos. No final do ano, o BC pôs em prática o que a gente chama de medidas prudenciais, que subiram as taxas de juros. Isso nós combinamos. Essas medidas já diminuíram o crédito para automóveis. O juro desse crédito passou de 19% para 23%. O crédito ao consumidor de 41% para 49%. A economia já está se ajustando para um ritmo menor, que é o que nós queríamos. A economia já está menos aquecida. Além disso, o BC subiu os juros também.

--O Sr. está defendendo a alta dos juros agora, ministro?

Quando é necessário, você tem que elevar os juros. Eu sou contra você manter juros artificialmente altos desnecessariamente.

--Mas o Brasil não tem juros absurdamente altos?

E sou favorável que suba os juros quando há problema de inflação. Não que esses juros aí tenham ajudado a diminuir. Eu acho que as medidas prudenciais e o aumento do compulsório, que são na veia e que foram tomados também pelo BC, são mais efetivas. E subiram os juros. O juro subiu 8 pontos percentuais para o consumidor graças às medidas prudenciais. A elevação dos juros também serve para as expectativas. Os juros são muito altos no Brasil? É verdade. Só que já foram muito mais altos. Estamos numa trajetória de redução de juros há pelo menos 8 anos.

--Mas agora inverteu.

Não inverteu. É que você tem que olhar a tendência. Juro não pode ficar amarrado. Não é dizer, olha, ele vai descer sempre. Juro é um instrumento de combate conjuntural. Então você tem que ter a liberdade de num determinando momento, um determinado mês, dois meses, três meses, o juro sobe e depois ele desce. O que eu quero dizer: sim, o Brasil ainda tem uma taxa de juro elevada, porém ela vem diminuindo ao longo do tempo e ela continuará diminuindo. Porque nós estamos aperfeiçoando a relação entre política fiscal e política monetária. Nós estamos dando um "upgrade" nessa política. Nós já demos no governo anterior, ela já melhorou muito, tanto que os juros já caíram. O juro real no segundo governo Lula: chegamos a 4%, 5%. No passado, era no mínimo 10%, 11%. Então já avançou muito. Vamos avançar mais porque nós estamos amadurecendo a política fiscal e monetária, caminhando para um patamar ainda melhor do que já foi. E com essas medidas que nós estamos fazendo, nós estamos abrindo espaço para que, depois de passado esse surto inflacionário momentâneo agora, para o BC tenha as condições de baixar os juros.

--E isso o Sr. espera que aconteça neste ano?

Eu prefiro não dizer. Quando for possível, quando o BC achar que houver condições, ele o fará e nós estamos criando essas condições com essa redução da demanda do Estado e dos gastos públicos, nós estamos abrindo espaço para que os juros possam cair no momento em que for considerado adequado. Não agora, evidentemente. Porque agora nós ainda temos uma pressão inflacionária, que vai se dissipar. Quando ela se dissipar, quando a inflação estiver indo mais próximo do centro [da meta], o BC deverá reduzir o juro.

--Sobre expectativas. Aumento de juros, cortes para pagamento de juros...

Como os cortes vão para o pagamento de juros? Os cortes vão para fazer o [superávit] primário.

--Então. Mas o primário não é para pagamento de juros?

O primário é pagamento da dívida.

--O corte é para garantir o pagamento de juros.

Mas você queria que o Brasil fosse caloteiro, não pagasse juros, está sugerindo isso?

--Não, Eu não quero nada, não estou sugerindo nada. Só estou descrevendo a situação.

Não, é também para reduzir a dívida, como a relação dívida X PIB.

--O objetivo dessas medidas (salário mínimo, juros, cortes) é sinalizar que o governo da presidente Dilma é simpático aos mercados? Tudo isso é um receituário mais ortodoxo. A presidente está preocupada em ganhar a simpatia desses setores da elite?

Isso eu queria deixar muito claro: não é um receituário ortodoxo. Eu como ministro da Fazenda jamais praticarei um receituário ortodoxo. Escreve. A minha biografia não muda, eu nunca mudei. Continuo exatamente um desenvolvimentista. Agora isso não significa que eu não seja responsável do ponto de vista fiscal. Eu como ministro da Fazenda fiz o maior superávit fiscal dos dois governos Lula, que foi em 2008. E que eu fiz um fundo com a poupança fiscal. Isso não é da ortodoxia. Todos os governos do mundo, com exceção talvez dos Estados Unidos, países que não praticaram esse equilíbrio fiscal, de esquerda e de direita, adotaram a responsabilidade fiscal. Todos os países emergentes, desde a China. Você não vai dizer que a China é ortodoxa, né? A China tem responsabilidade fiscal. A Índia tem um equilíbrio fiscal menor, mas tem uma poupança elevada.

Governos de esquerda e de direita adotaram há algum tempo o princípio da solidez fiscal. Isso aqui não tem nada a ver com ideologia. É bom que fique claro. Eu costumo entregar o primário com o qual me comprometo. Isso não tem nada de ortodoxo, tem de sustentável. Porque se você não cumprir, você será penalizado. Se você disser: agora eu vou torrar o dinheiro, vou aumentar o investimento, vou gastar tudo, não vou me preocupar. Você vai ter logo adiante um desequilíbrio, o risco país sobe, as taxas internacionais em relação ao Brasil sobem, a desconfiança aumenta.

--Mas o modelo continua transferindo renda para os mais ricos.

O modelo continua transferindo renda para os mais pobres. O nosso modelo continua igualzinho. A prioridade da presidenta Dilma é a pobreza, é o emprego. O Brasil hoje é um dos países que mais gera emprego no mundo e esse era o objetivo. Ela não está querendo agradar nem A nem B nem C. Ela assumiu compromissos que são os mesmos do governo Lula. O compromisso de fazer do Brasil um país cada vez mais desenvolvido e diminuir a miséria e a desigualdade social.

--Por isso que eu não entendi as primeiras medidas. Com todos esses objetivos.

Essas primeiras medidas do governo são para garantir que o crescimento vai continuar. Porque se você desequilibrar a economia, e dissesse: passou a crise, mas eu vou continuar investindo...

--Passou a crise, o Sr. acha?

Para o Brasil a crise passou. Para o mundo não passou.

--Estou entendendo que a inflação, apesar de ser uma preocupação permanente, ela não é a preocupação maior.

É a preocupação maior do Banco Central. Toda a vez que a inflação sobe, acendem as luzinhas. Eu olho inflação todo o dia, item por item todo o dia. Você acha que não há preocupação? Eu olho para dizer que nós estamos seguros que a inflação está sob controle no Brasil. E continuaremos tomando medidas para que ela continue sob controle.

--Contas externas. É um problema de fundo na economia brasileira?

As contas externas têm que ser também uma preocupação permanente. O crescimento sustentável é um crescimento que se dá com inflação sob controle, com as contas públicas sob controle e com as contas externas também sob controle. Então são três eixos importantes. Nós estamos de olho nas contas externas, no déficit de transações correntes, nós não vamos permitir uma deterioração do déficit das transações correntes. Então, um dos desafios que nós temos é melhorar as contas externas.

--E o que será feito? Com o juro subindo, essa invasão de dólares...

O juro subindo, mas o câmbio está estável. A gente tem feito permanentemente estímulos à exportação, embora com a crise o mercado internacional encolheu. Então é impossível em certas circunstâncias você aumentar a exportação de manufaturados, porque está sobrando manufaturado no mundo. Todo mundo quer exportar manufaturados e tem países que fazem manipulação cambial para conseguir ter preços mais baixos para os seus manufaturados. A gente tem enfrentado tudo isso, nos fóruns internacionais. A gente tem colocado taxas no excesso de capitais no Brasil, não há bolhas no Brasil, nós conseguimos controlar, não há bolha na bolsa brasileira, a gente modera o excesso de entrada de capital. A gente colocou IOF na aplicação financeira, na bolsa, no mercado de derivativos. A gente modera os exageros. Mas é inevitável que entre investimento porque o Brasil hoje é um país sólido e muito atraente.

--Claro, com essa taxa de juros...

Não é por causa da taxa de juros, é porque o país é rentável. O Brasil é um país onde as empresas têm lucro. Não são somente os bancos. Espera para ver o balanço das empresas. Você vai ver que a rentabilidade das empresas brasileiras é alta, porque é um país dinâmico, eficiente, sólido. Então as empresas vêm investir aqui no Brasil. Elas querem se associar às empresas brasileiras. É claro que sempre tem os capitais especulativos que querem ganhar. Esses é que nós combatemos.

--Controle na entrada de capitais é palavrão? E as remessas de lucros? As montadoras, por exemplo, remeteram dez vezes mais do que investiram. As montadoras pegaram o dinheiro subsidiado do BNDES, trouxeram importados pelas matrizes.

Você tocou num setor extremamente bem-sucedido na economia brasileira, o automobilístico. O Brasil passou pela crise, enquanto os outros mercado encolheram, a produção caiu, alguns quebraram, o Brasil, pela sua estratégia, conseguiu manter uma indústria automobilística sólida. O que é bom, porque ela é responsável por mais de 20% do PIB no seu efeito encadeado. Eles fizeram investimentos.

--Mas remeteram muito mais.

Todo mundo remeteu. Por quê? Porque as empresas aqui dentro foram lucrativas. Lá fora deram prejuízos e as matrizes pediram para remeter para preencher os buracos que elas tinham lá. Esse é o preço do sucesso que nós pagamos neste ano. A economia brasileira tinha um mercado interno, nós crescemos mais e até aumentamos as importações. Os outros lá fora não recuperaram os seus mercados e então ficou um desequilíbrio que se refletiu no balanço de transações correntes. Nós aumentamos as exportações também, quase 30%. Mas as importações cresceram mais de 40%.

--Mas as exportações foram mais de matéria-prima.

Não importa. É aquilo que no momento deu lucro. No momento, exportar matéria-prima dá um valor agregado maior do que os manufaturados. Então o que você vai fazer? Você tem que aproveitar a oportunidade. Apostamos na recuperação do mercado de manufaturados. E um outro desafio que nós temos aqui é não deixar a indústria manufatureira ter uma deterioração no Brasil. É estimular as exportações, devolver créditos, combater a concorrência desleal de países, atuar na área cambial. E nós cada vez faremos mais medidas. Neste governo a defesa comercial vai ter uma atenção especial e estímulo à exportação. Nós vamos em breve apresentar.

--Que medidas?

Não vou te dizer porque nós estamos amadurecendo. Isso é uma coisa do novo governo.

--E o controle na entrada de capitais?

O que nós fazemos é uma moderação dos lucros justamente para compensar essa taxa de juros alta que nós temos. A gente meteu 6% de IOF. Nós tiramos metade da rentabilidade. Se o sujeito vem fazer uma aplicação de um, dois, três meses ele perde dinheiro. Se ele vem aplicar na renda fixa ele está perdendo dinheiro com os 6%. Nós tomamos medidas que foram reconhecidas pelo mundo como acertadas para influir no câmbio num momento em que várias economias estão manipulando o câmbio. Nós nos defendemos. Se nós não tivéssemos tomado essas medidas, o câmbio já estaria a R$ 1,45, R$ 1,50.

--Mas essas medidas são suficientes?

Se elas não forem suficientes, outras medidas serão tomadas. Isso inclusive já é um consenso até no G20. No penúltimo relatório está lá: que os países que sofrem esse tipo de problema podem tomar medidas macroprudenciais. Isso nós é que escrevemos lá.

--E o Sr. acha que isso vai ser necessário?

Se for necessário, tomarei. Mas eu não posso antecipar. Outra questão que você tinha levantado. Outro eixo importante é fortalecer o setor de manufaturados, principalmente bens de capital. O Brasil tem que ter uma indústria de bens de capital forte, porque é ela que gera tecnologias, ela que absorve e difunde novas tecnologias. Nós continuaremos tomando medidas para que aconteça o que aconteceu no passado. Setor de bens de capital cresceu 20% no ano passado. Com toda essa concorrência. A indústria cresceu 10,4% no ano passado. Não é pouca coisa num ano de crise.

--Mas a cadeia produtiva não está começando a ficar toda esburacada pela importação de componentes, de materiais. Empresas de tecidos que fecham e importam tecido pronto só para botar a marca. O Sr. acha que há risco de desindustrialização? Apesar do resultado ser positivo, no meio da cadeia os subsetores não estão sendo destruídos?

Algumas importações de fato causam algum estrago. Agora não podemos ignorar o fato de que nós vivemos numa economia de concorrência. Nós aceitamos as regras da OMC, alguns setores sofrem concorrência. A que nós combatemos é a desleal, aquela concorrência que vem com subfaturamento, que vem com subsídio disfarçado, que vem com manipulação cambial. Essa nós queremos combater e vamos tomar medidas para combater. Agora existe uma concorrência que é leal, que é normal e que essa você não pode impedir. Isso inclusive é um estímulo para que empresário brasileiro seja mais competitivo. O que o governo tem que fazer é dar condições para que o empresário brasileiro seja competitivo. Um setor que ainda nós temos uma espécie de carência aqui no Brasil é de inovações. Mas o empresariado resiste, também. O governo tem aumentado muito o recurso para inovação. Então tem que haver uma parceria maior entre o governo e o setor privado para que ele invista mais em inovação. Linhas de crédito estão aí, várias linhas de crédito a juros subsidiados para inovação.

--Com esse juro, o empresário prefere aplicar o dinheiro a investir.

Não sei. Eu acho que o empresário brasileiro está entrando nessa filosofia. Ele percebe que o mundo é cada vez mais competitivo e nós temos que ter produtividade, eficiência, e o brasileiro é muito criativo. Nós estamos apoiando e vamos continuar apoiando a indústria para que não haja --eu acredito que não haja-- desindustrialização. Perigo sempre existe, mas existe no mundo todo. Na Alemanha, até na China existe. Não é porque o país está vencendo hoje que ele vai vencer amanhã. Os Estados Unidos há 50, 60 anos eram imbatíveis. Então todo mundo tem que ficar alerta o tempo todo. Nós temos um diálogo com a indústria, nós temos aqui um fórum que se reúne uma vez por mês, que discute os problemas do setor produtivo, da indústria, do setor de bens de capital e nós temos tomado soluções que são muitas vezes demandadas por eles para poder cada vez mais melhorar a sua competitividade. Nós não deixaremos acontecer a desindustrialização no Brasil. Agora não podemos esquecer que o mundo ainda está em crise. E isso afeta as exportações de manufaturados. E afeta as importações porque tá todo mundo vendendo barato. Tá todo mundo liquidando por aí e isso nos afeta. Mas nos próximos dois ou três anos esse cenário vai se modificar e nós voltaremos a exportar mais. O Brasil ganhou mercado. Nessa crise toda, a participação do Brasil nas exportações mundiais cresceu.

--Mas são commodities, Vale...

Seja o que for...

--Não sei se 'seja o que for'. Se o Brasil vai depender de commodities...

O Brasil tem a virtude de possuir ambas as coisas. É um país que não é nem um exportador de commodities, não é só um país só industrializado, com carência de insumos. Não é nem o Japão. O Brasil tem uma estrutura diversificada de produção, que é uma grande vantagem. No momento que o setor manufatureiro está mal no mundo, mas está bem no de commodities. Nós estamos indo bem porque o mundo está bem (na demanda de commodities). O setor de commodities pode ir mal, como já esteve no passado, aí nós vamos ter o setor manufatureiro que vai cumprir essa função.

O importante é que nós somos diversificados, isso é uma vantagem. Nós somos diversificados, nós temos petróleo, nós temos combustível alternativo, nós temos terra, nós temos sol, nós temos produtividade agrícola. O Brasil hoje conseguiu potencializar todas essas virtudes que ele tinha. O Brasil era um país virtuoso, mas a virtude estava encapsulada, era potencial. Hoje as virtudes estão realizadas, estão se realizando. Isso é uma vantagem. Isso que você está reclamando é uma vantagem. Já pensou se o Brasil não tivesse o setor de commodities competitivo? Se dependesse só da manufatura nós não estaríamos...

--Mas o que agrega mais emprego, dinamiza a economia é o setor industrial.

Não, o setor agrícola agrega muito emprego: 25% da mão de obra é agricultura. E a agricultura brasileira é um setor que se tornou muito dinâmico. Outro setor muito dinâmico que agrega emprego é a construção e nós dinamizamos esse setor, nós tiramos esse setor do limbo. E ele vai continuar, com PAC, Minha Casa, Minha Vida.... Hoje o setor está bombando.

--Qual o papel do BNDES?

O BNDES foi fundamental na crise. Vários países desejariam ter tido um BNDES para enfrentar a crise. Ele continuará financiando infraestrutura, esses setores de capital intensivo, que demoram mais para amadurecer. Continuará tendo um papel fundamental na economia brasileira. Principalmente porque nós continuamos estimulando o investimento no país. Ele financia a venda de máquinas, máquinas agrícolas, equipamentos. Agora ele não terá o mesmo papel que teve durante a crise, porque na crise foi uma situação de emergência. Então, o Tesouro não continuará colocando o mesmo aporte que fez durante a crise.

--Quem pegou, pegou; quem não pegou, não pegou...

Não, nós criamos outros mecanismos para que o empresariado possa captar recurso mais barato, que é mais diretamente do setor privado. Nós fizemos um programa, reduzimos impostos, criamos outros instrumentos, mecanismos, estimulamos debêntures. Então o Brasil tem um mercado de capitais que pode florescer e que dá financiamento barato e então não precisa do BNDES. Então esse é o amadurecimento e o setor privado acha isso correto. Acho que os bancos privados têm que entrar no financiamento longo. Nós demos condições para que eles tenham "funding". As taxas serão cadentes. E tem muitos empresários captando no exterior a taxas que são ridículas.

--Mas nem todo mundo consegue.

As grandes todas conseguem. Quando não, abrir o capital e ter uma participação de "equity" que é a melhor coisa, porque não é endividamento. O Brasil hoje tem todas as virtudes. Hoje o Brasil, pelas suas condições, atrai capital, não é o especulativo, porque a gente espanta. O especulativo percebe que o governo está atento. Vêm os grupos que querem de fato investir, que querem participar das empresas brasileiras, que dão "funding" para as empresas brasileiras.

--Essa desnacionalização que ocorre em vários setores preocupa? Na cana, por exemplo?

Não vejo desnacionalização, pelo contrário. O Brasil sempre foi um país aberto ao capital externo. O que aconteceu foi o contrário. Foi que o Brasil está investindo muito no exterior. As empresas brasileiras estão crescendo, estão se multiinternacionalizando. Estão se internacionalizando, que é uma condição necessária para você ser forte. Você tem a Vale, a Petrobras, a Gerdau. Em todos os campos você tem várias empresas brasileiras comprando ativos no exterior. E dando sinergia com sua produção local. Indo disputar mercados lá fora. Hoje o Brasil tem investimento na Argentina, no Uruguai, toda a América Latina. Temos nos EUA, na Europa. O que houve foi o fortalecimento da empresa brasileira.

--Isso muito com a ajuda do BNDES, não?

Com a ajuda do BNDES também, ou com recursos próprios. É fundamental dizer também que o empresário brasileiro é um dos mais bem-sucedidos, competentes. Tem empresário brasileiro dirigindo multinacionais por aí...

--Executivos, não?

Executivos, é. Porque parece que o Brasil tem uma escola boa. Passou pelo Brasil, enfrentou problemas no passado. Nós enfrentamos as dificuldades da crise muito melhor do que outros países. O Brasil cresceu na crise. O Brasil foi reconhecido na crise pela habilidade em enfrentá-la, pela solidez que demonstrou. Porque é na hora do aperto que você mostra as suas condições. Porque quando está tudo bem, tem crédito abundante no mercado internacional, qualquer um pega. Mas quando falta crédito, os países que não estão fortes eles afundam e os que estão fortes continuam. O Brasil, digamos, foi beneficiado por essa crise. Claro, tivemos problemas. Mas o Brasil mostrou na crise que era mais sólido do que outros países, tinha condições melhores. E também pela reação que o governo teve, junto com o empresariado. Porque várias medidas foram tomadas discutindo e tudo mais. Hoje nós somos um país bem-sucedido. Não faltam capitais para o Brasil.

Temos outros dilemas, porque também excesso de capital não é bom. Mas eu prefiro ter excesso de capital do que falta como era no passado. Ter excesso de empregos é melhor do que ter falta de emprego. Sempre tem problema para resolver. E um último problema importante que é o desafio da mão de obra. Como cresceu muito a oferta de trabalho, por causa de todos esses investimentos, esse crescimento, nós precisamos aumentar a oferta de mão de obra qualificada. O governo está preparando um grande programa de qualificação. Já vinha trabalhando nisso. Uma parte disso é educação, é formação de engenheiros, de doutores, de biólogos e nós vamos fazer um esforço adicional porque estamos sendo colocados na frente de um desafio de aumentar mais a mão de obra qualificada.

--O pré-sal, por exemplo.

A quantidade de navios que foi encomendada pela Petrobras vai exigir pessoal especializado, oficiais, pilotos. Porque a indústria naval tinha morrido no Brasil e ninguém mais se formava prático, piloto, comandante. Nós estamos criando mais vagas para formação. Porque daqui a dois, três anos nós vamos estar importando piloto do Japão, para poder dirigir todos os barcos que vamos ter aqui no Brasil. Mas esse é um bom desafio. Eu falei quatro desafios para você: a questão das contas externas, a questão da industrialização, a questão de fortalecer a manufatura e da qualificação da mão de obra. São os quatro eixos da área econômica do governo que nós temos que enfrentar para dar continuidade a esse crescimento sustentado.

--Como o Sr. vê a perspectiva da economia mundial e as turbulências no mundo árabe?

A economia mundial vai se resolvendo. Nós temos hoje um descompasso na economia mundial que não é de agora, mas foi apenas acentuado pela crise. Nós temos regiões que têm dificuldade de crescer e regiões mais dinâmicas que vão puxar a economia mundial. Não vamos ter a repetição da crise, não vamos ter o movimento em W. Porém nós vamos precisar ainda de dois a três anos para que a União Europeia saia da crise. A Alemanha já saiu.

--Vai mudar alguma coisa no sistema financeiro?

O sistema financeiro está sendo submetido a uma regulamentação. O G20 está trabalhando numa regulamentação mundial que está quase pronta. Regras prudenciais, exigências de capital, limites de exposição. Os bancos grandes estarão submetidos a uma regulamentação mais forte. Os bancos que podem quebrar o mundo.

--Eles não quebram porque os governos salvam. E depois os governos têm que fazer ajuste fiscal para pagar o dinheiro que eles deram para os bancos. Não é assim que funciona?

É, infelizmente houve erros no passado de desregulamentação financeira. O que nós ainda não conseguimos, mas estamos trabalhando é para uma regulamentação no mundo, não no Brasil, do mercado de derivativos. Aí os americanos resistem a isso. Não há mais aquilo. Reduziu muito a alavancagem. A subprime está paralisada. Essa fonte secou.

--O Sr. viu "Trabalho Interno" (documentário de Charles Ferguson)?

Vi. Sensacional. É uma aula perfeita de economia. Voltando à economia mundial. Ela está em recuperação, porém ela é lenta, é mais lenta na União Europeia, um pouquinho mais acelerada nos Estados Unidos. Eles vão crescer este ano 3%, 3,5%. É pouco. Não resolveram ainda os problemas de subprime, do desemprego. O crescimento da economia mundial depende dos países emergentes. Vai depender muito mais de nós do que deles.

--O que vai mudar nos impostos nesse governo?

A filosofia deste governo é diminuir impostos. Aliás, nós já diminuímos no governo anterior vários impostos, principalmente para investimentos. E nós continuaremos diminuindo impostos. Isso não se percebe porque há uma formalização muito grande da economia brasileira e então quando você olha a arrecadação ela cresce, mas ela cresce porque teve crescimento e formalização.

O Sistema Simples reduziu impostos para pequena e média empresa, que gera emprego. Já reduziu e nós queremos continuar reduzindo impostos. Agora dentro do equilíbrio fiscal. Então eu não vou comprometer o equilíbrio fiscal reduzindo precipitadamente impostos. Mas a trajetória deste governo é reduzir impostos. E não há intenção de criar nenhum imposto novo. Quando houver a condição, nós deveremos reduzir o custo da folha de salários, do lado da contribuição patronal. Porém é preciso haver condições sólidas para que a gente faça isso. Neste momento, não há espaço.”

FONTE: reportagem de Eleonora De Lucena publicada na Folha de São Paulo (http://www1.folha.uol.com.br/poder/881514-primeiras-acoes-de-dilma-parecem-governo-lula-3-diz-mantega.shtml).

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