segunda-feira, 8 de fevereiro de 2010

M.GORBACHEV: PARA O AFEGANISTÃO TER FUTURO, É PRECISO APRENDER COM O PASSADO

Terra Magazine

Mikhail Gorbachev

"O Afeganistão está em tumulto, com tensões emergindo e pessoas morrendo a cada dia. Muitas delas - inclusive mulheres, crianças e os idosos - não têm nada em comum com terroristas ou militantes.

O governo está perdendo o controle de seu território: das 34 províncias, o Talibã controla uma dúzia. A produção e a exportação de narcóticos estão crescendo. Há um perigo real de que a desestabilização se estenda a países vizinhos, inclusive para as repúblicas da Ásia Central, assim como para o Paquistão.

O que teve início após o 11 de setembro, como uma resposta militar aparentemente apropriada contra a enraização do terrorismo, poderia terminar em um grande fracasso estratégico.

Precisamos entender porque isso está acontecendo e o que ainda pode ser feito para mudar uma situação quase desastrosa. A recente conferência em Londres, em que participaram representantes de muitos países e de diversas organizações internacionais, é um primeiro passo em uma nova direção.

Após preparações diligentes, os delegados presentes na reunião de Londres adotaram decisões que poderiam ajudar a mudar as coisas - mas apenas se a experiência das últimas décadas for reavaliada e se suas lições forem aprendidas.

Em 1979, a liderança soviética enviou tropas ao Afeganistão, justificando tal estratégia não apenas pelo desejo de ajudar elementos amigáveis lá, mas também pela necessidade de estabilizar um país vizinho. O maior erro foi não compreender a complexidade do Afeganistão - sua miscelânea de grupos étnicos, clãs e tribos, suas tradições únicas e sua governança ínfima.

O resultado foi o oposto do que pretendíamos: instabilidade ainda maior, uma guerra com milhares de vítimas e consequências perigosas para o nosso próprio país. Além disso, o Ocidente, particularmente os Estados Unidos, manteve aceso o fogo do espírito da Guerra Fria; ele permaneceu pronto para dar apoio a qualquer um que estivesse contra a União Soviética, não pensando nas possíveis consequências de longo prazo.

Como parte da Perestroika, na metade da década de 1980, a nova liderança soviética tirou conclusões de nossos problemas no Afeganistão. Tomamos duas decisões cruciais.

Em primeiro lugar, estabelecemos a meta de retirar nossas tropas. Em segundo lugar, pretendíamos trabalhar com todas as partes no conflito e com os governos envolvidos para atingirmos a reconciliação nacional no Afeganistão e o transformamos em um país pacífico e neutro que não ameaçava ninguém.

Olhando para trás, ainda acredito que este foi um caminho de mão dupla apropriado e responsável. Tenho certeza de que se tivéssemos sido totalmente bem-sucedidos, muitos problemas e desastres poderiam ter sido evitados. Nossa nova política não era apenas uma declaração; durante meu mandato, trabalhamos duro e com boa-fé para implementá-la. Para alcançarmos o sucesso, precisávamos de uma cooperação sincera e responsável de todos os lados. O governo afegão estava pronto para chegar a um acordo e chegou até mais do que a metade do caminho para atingir a reconciliação. Em uma série de regiões, as coisas começaram a melhorar.

Contudo, o Paquistão, particularmente o alto comando, e os Estados Unidos bloquearam todas as avenidas para o progresso. Eles queriam uma coisa: a retirada das tropas soviéticas, o que eles pensaram que os deixaria com controle total. Ao negar ao governo do presidente afegão, Muhammad Najibulla, qualquer nível de apoio, Boris Yeltsin ficou em suas mãos quando assumiu.

Durante a década de 1990, o mundo parecia indiferente ao Afeganistão. Naquela década, o governo do país caiu nas mãos do Talibã, que transformou o Afeganistão em um paraíso para os fundamentalistas islâmicos e em uma incubadora do terrorismo. O 11 de setembro foi um rude despertar para os líderes ocidentais. Mesmo então, contudo, o Ocidente tomou uma decisão que não foi cuidadosamente considerada e que, portanto, provou ser falha.

Após suplantar o governo do Talibã, os Estados Unidos acreditaram que a vitória militar, atingida a um baixo custo, era definitiva e tinha basicamente resolvido o problema a longo prazo. O sucesso inicial foi provavelmente uma das razoes que explicam porque os americanos esperavam uma "passarela" no Iraque, dando um passo fatal em uma estratégia militarista lá também. Enquanto isso, eles construíram uma fachada democrática no Afeganistão, a ser protegida pela força de assistência à segurança internacional, isto é, as tropas da OTAN. Cada vez mais, a OTAN buscou assumir o papel de polícia global.

O resto é história. O caminho militar no Afeganistão mostrou ser cada vez menos sustentável. Este era um segredo aberto; até mesmo o embaixador dos EUA afirmou isso recentemente.

Nos últimos meses, muitos têm me perguntado o que eu recomendaria ao Presidente Obama, que herdou esta bagunça de seu predecessor. Minha resposta é sempre a mesma: uma solução política e a retirada das tropas. Isso requer uma estratégia de reconciliação nacional.

Agora, finalmente, uma estratégia muito similar àquela que oferecemos há mais de duas décadas e que nossos parceiros rechaçaram foi apresentada na reunião de Londres: reconciliação, envolvendo todos os elementos mais ou menos razoáveis na reconstrução, e enfatizando uma solução política, ao invés de uma solução militar.

O enviado das Nações Unidas ao Afeganistão disse, em uma recente entrevista, que o realmente necessário é a desmilitarização de toda a estratégia no Afeganistão. Que pena que isso não foi dito, e feito, há muito tempo!

As chances de sucesso - sucesso ao invés de "vitória" militar - são, na melhor das hipóteses, de cinquenta por cento. Houve alguns contatos com certos elementos dentro do Talibã. Ainda resta mais a ser feito para incorporar o Irã ao processo; muito trabalho duro permanece por ser feito com os paquistaneses.

A Rússia pode transformar-se em uma parte importante do processo de assentamento afegão. O Ocidente deveria compreender a posição que os líderes russos estão tomando no Afeganistão. Longe de vangloriar-se e deixar o Ocidente segurar a barra enquanto lavamos nossas mãos em relação a tudo isso, a Rússia está pronta para cooperar com o Ocidente, porque ela compreende que é parte de seus melhores interesses conter as ameaças vindas do Afeganistão.

A Rússia está certa em perguntar por que, durante os anos de presença dos EUA e da OTAN no Afeganistão, pouco ou nada foi feito para estancar a produção de narcóticos, sendo que grandes quantidades são enviadas para a Rússia, através das fronteiras porosas de seus vizinhos, ameaçando a saúde de nossa nação. A Rússia também tem razão ao demandar acesso às oportunidades econômicas no Afeganistão, incluindo a reconstrução de dúzias de projetos construídos com nossa ajuda e mais tarde destruídos durante a década de 1990.

A Rússia é vizinha do Afeganistão, e seus interesses devem ser levados em consideração. A lógica parece autoevidente, mas às vezes um lembrete pode ser útil.

Eu gostaria de ter a esperança de que uma nova fase está nascendo para o tão sofrido Afeganistão, com um raio de esperança para os seus milhões de habitantes. A chance está lá, mas muito é necessário para agarrar a nova oportunidade: realismo, persistência e, por ultimo, mas não menos importante, honestidade para aprender com os erros do passado e a capacidade de agir com base em tal conhecimento."

FONTE: escrito por Mikhail Gorbachev, líder da extinta União Soviética de 1985 até o seu colapso em 1991. Laureado com o Prêmio Nobel da Paz em 1990, ele é atualmente o presidente da Fundação Internacional de Estudos Socioeconômicos e Políticos (A Fundação Gorbachev). Publicado no "The New York Times" e reproduzido no portal "Terra Magazine", do jornalista Bob Fernandes.

Nenhum comentário: