segunda-feira, 1 de fevereiro de 2010

EMBAIXADOR NEGA TENSÃO COM OS EUA

"Igor Kipman, o chefe da representação brasileira no Haiti, diz que relações são “harmoniosas”

O embaixador Igor Kipman, que no fim deste mês completará dois anos à frente da representação brasileira em Porto Príncipe, não estava no Haiti no dia em que o país enfrentou a pior de suas tragédias. No dia seguinte, no entanto, já estava na capital haitiana para desempenhar o papel de elo entre o Brasil e os haitianos, ligação que se tornou ainda mais essencial agora. Da cidade em ruínas, concedeu entrevista ao Correio, e manteve a posição do governo brasileiro de negar qualquer mal-estar entre brasileiros e norte-americanos no que concerne à ajuda ao Haiti. “As tropas dos dois países têm atuado em conjunto e a coordenação se dá em todos os níveis, sem qualquer dificuldade ou desconforto”, garante.

Ele ainda afirma que, apesar do desespero da população após o terremoto, não houve “caos” no país nem um clima terrível de insegurança na capital. “Ao retornar ao Haiti, circulei por toda a capital, sem perceber nada que pudesse ser qualificado de caos. (...) Os haitianos se comportam de forma ordeira, pacífica, paciente e digna; eles se organizaram, dividindo tarefas e responsabilidades”, avalia. Para ele, no entanto, é “prematuro” estipular um prazo necessário para que a ajuda internacional atue no país. “Ainda estão sendo avaliados os danos causados pela catástrofe.”

Vinte dias após o terremoto, o que já foi feito para que os haitianos retomem suas vidas?

Na fase que vivemos, de resposta à emergência, a ação do Brasil e da comunidade internacional está sendo rápida e eficaz. Até o momento, o batalhão do Brasil no Haiti já distribuiu mais de 200 toneladas de alimentos, enviados por diversos países, e cerca de 400 mil litros de água potável. Foram instalados 22 hospitais nas áreas atingidas, entre os quais um hospital de campo da FAB, que já realizou mais de 100 cirurgias e prestou cerca de 3 mil atendimentos ambulatoriais. Prosseguem os trabalhos de remoção de escombros por toda a cidade, com a população engajada também nesse esforço. Estão sendo construídos acampamentos provisórios para dezenas de milhares de desabrigados, nos arredores de Porto Príncipe. A segunda fase, de reconstrução, já começa a se esboçar. Além do esforço individual dos próprios haitianos, que já estão reparando os danos de suas próprias casas, há promessas de vários governos de reconstrução de símbolos nacionais. Essa será a fase mais longa, que requererá maior volume de recursos e para a qual a comunidade internacional deverá continuar apoiando o Haiti.

É possível dizer que os haitianos já conseguiram restabelecer uma rotina, ou a situação ainda é de caos?

Não se pode dizer que houve caos. Claro que nas primeiras horas houve muita confusão, muitas das principais vias de circulação foram interrompidas pela queda de edifícios, havia dezenas de milhares de corpos pelas ruas e outros milhares de pessoas vivas soterradas bradando por socorro. Mas as forças internacionais que integram a Minustah imediatamente saíram às ruas para viabilizar a circulação. Ao retornar ao Haiti, circulei por toda a capital, sem perceber nada que pudesse ser qualificado de caos. Nesse mesmo dia, já se percebia nas ruas o retorno, ainda que tímido, do comércio ambulante de alimentos, característico desse país. Hoje, os haitianos já voltaram à rotina — claro, ainda sob o impacto da maior tragédia que já se abateu sobre este povo sofrido. Mas, ainda assim, os desabrigados se organizaram em acampamentos improvisados, nas praças e em outros locais públicos, e todo o comércio cujas instalações não foram atingidas já reabriu suas portas. O fornecimento de combustível e de água potável e os supermercados estão em pleno funcionamento.

Agências de notícias presentes no Haiti têm relatado a insegurança vivida pelos haitianos, reportando casos de violência inclusive contra mulheres. Há, de fato, um clima de insegurança no país?

Eu circulo, diariamente, pelos inúmeros acampamentos improvisados na cidade e posso observar exatamente o contrário: os haitianos se comportam de forma ordeira, pacífica, paciente e digna. Eles se organizaram, dividindo tarefas e responsabilidades. Trata-se de um povo alegre por natureza e nas noites pode-se ouvi-los cantando em inúmeras áreas da capital. Contrariamente ao que se noticia, houve uma queda nos números de estupros após o terremoto — infelizmente, sempre foram em número relativamente elevado neste país. Salvo alguns episódios isolados, que foram rapidamente controlados, não ocorreram incidentes de “tumulto generalizado”.

O ministro da Defesa, Nelson jobim, sugeriu que a missão da ONU no Haiti mude o seu “status”, para assumir um papel também na reconstrução do país. Como o Itamaraty vê essa opção?

O Brasil sempre defendeu a necessidade da vertente do desenvolvimento nas missões da ONU. Na última semana, o ministro Celso Amorim, em discurso proferido no Conselho de Direitos Humanos da ONU, destacou a necessidade de uma abordagem que englobe, simultaneamente, a segurança, a assistência humanitária e o desenvolvimento.

O governo brasileiro tem se esforçado para reforçar que não há mal-estar entre os governos brasileiro e norte-americano sobre a atuação no Haiti. No entanto, percebe-se um desconforto entre os militares brasileiros. Como tem sido a relação entre representantes dos dois governos presentes no Haiti?

Não tem havido desconforto e as relações têm sido muito harmoniosas. Todos os países estão procurando agir em conjunto e de maneira coordenada a fim de ajudar o povo haitiano a mitigar o sofrimento causado pelo terremoto. A divisão de tarefas e de funções também é bastante clara. Cabe à Minustah, cujo contingente militar é liderado pelo Brasil, garantir a segurança, ao passo que os EUA assumiram tarefas de assistência humanitária. As tropas dos dois países têm atuado em conjunto e a coordenação se dá em todos os níveis, sem qualquer dificuldade ou desconforto. Eu presenciei pessoalmente inúmeras declarações do general Floriano Peixoto (comandante da Minustah) e ele manifestou sua satisfação com o clima de cordialidade e cooperação existente com os efetivos norte-americanos.

Parece que as ações dos diferentes países ainda não estão coordenadas. Há alguma confusão na divisão de tarefas?

A significativa perda de quadros, tanto no âmbito da Minustah quanto do governo do Haiti e das inúmeras organizações internacionais que atuam no país, provocou dificuldades na coordenação nos primeiros dias pós-terremoto. As dificuldades já foram superadas e a coordenação torna-se melhor a cada dia que passa.

Na conferência em Montreal, falou-se que serão necessários 10 anos de comprometimento internacional para reconstruir o país. Esse prazo é suficiente?

O prazo dependerá não apenas dos esforços do governo e do povo haitianos, mas, também, do comprometimento da comunidade internacional. O ministro Amorim observou que o Haiti representa hoje o maior desafio à capacidade da comunidade internacional de ajudar a reconstruir um país devastado, levando em conta sua soberania. Julgo que seja ainda prematuro tentar estabelecer um prazo, dado que ainda estão sendo avaliados os danos causados pela catástrofe.

Que tipo de ajuda os haitianos esperam do Brasil daqui para a frente?

O povo haitiano nutre um grande amor, admiração e respeito pelo Brasil. A cooperação brasileira intensificou-se a partir de 2004 e não se resume a sua face mais visível, que é a presença militar na Minustah. Já desenvolvemos 31 projetos de cooperação técnica no país, em áreas diversificadas, que incluem agricultura, saúde, educação, gênero, eleições e energia. Continuaremos atuando em todas essas áreas e estaremos dispostos a ajudar em qualquer outra demanda que seja apresentada pelo governo haitiano."

FONTE: reportagem de Isabel Fleck publicada hoje (01/02) no Correio Braziliense.

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