sábado, 20 de dezembro de 2008

BRASIL E OUTROS EMERGENTES DECOLAM NA CIÊNCIA

A seguinte reportagem de Monica Salomone foi publicada ontem no jornal espanhol El Pais (li no UOL em tradução de Luiz Roberto Mendes Gonçalves):

TERCEIRO MUNDO JÁ ESTÁ NA FOTO DA CIÊNCIA

AS SOCIEDADES POBRES COMEÇAM A DECOLAR NO MUNDO DA PESQUISA


“A presidente do prestigioso Instituto Tecnológico de Massachusetts (EUA), Susan Hockfield, não pensa nas mulheres quando lhe perguntam se é preciso promover uma maior presença feminina na ciência; pensa em seu país: "[Os EUA] competem cada vez mais em inovação tecnológica. (...) Diante desse desafio, é imperativo explorar o talento das duas metades da população, a masculina e a feminina".

Muitos baseiam nesse mesmo argumento egoísta a necessidade de estimular a ciência no mundo em desenvolvimento. Há mais probabilidade de resolver os problemas atuais, desde a mudança climática até a crise energética, se se aproveitar ao máximo a inteligência e a criatividade humanas, venham de onde vierem.

Qual é a situação atual a respeito? A garrafa está pela metade. Na parte cheia, os especialistas salientam que nas duas últimas décadas países como Brasil, Índia e China, sobretudo, mas também outros, decolaram com maior ou menor força. O mundo já não é norte-sul, mas multipolar, porque há um sul emergente. O ruim é que também há um sul estagnado, a garrafa vazia. Com o agravante de que a distância entre os extremos do gráfico continua aumentando, e cada vez mais depressa.

Dois dos satélites que hoje dão voltas em torno da Lua são o Chandrayaan-1, indiano, e o Chang'e-1, chinês. China, Índia e Coréia participam do projeto para construir na França o reator de fusão nuclear ITER. O Brasil e, é claro, a China tiveram papel importante no seqüenciamento do genoma humano. Argentina, Bolívia, Brasil, México e Vietnã estão entre os parceiros do grande observatório de raios cósmicos Pierre Auger, recém-inaugurado na Argentina. Várias instituições mexicanas participam do GTC, o telescópio espacial de 10 metros instalado em La Palma, Espanha. Esse país é um dos sócios do futuro Telescópio Espacial Mundial, projeto liderado pela Rússia, do qual também participam China e Ucrânia.

Quer dizer, há países em desenvolvimento que começam a entrar, mesmo que timidamente, na foto da ciência internacional. De fato, as últimas décadas "foram marcadas por um crescimento sem precedentes em ciência e tecnologia em uma parte importante do sul", afirma Jacob Palis, presidente da Academia de Ciências do Terceiro Mundo (TWAS na sigla em inglês). "Mas também aumentaram as desigualdades nessa área, e em conseqüência há países que estão ficando para trás no desenvolvimento baseado em ciência e que estão sendo mais marginalizados que nunca."

A TWAS nasceu há 25 anos pela mão do Nobel de física Abdus Salam, morto há uma década e cuja frase "A ciência é o legado comum da humanidade" é recordada com freqüência. Nesse tempo, a academia - financiada, sobretudo, pela Itália e agora administrada pela Unesco - passou de 41 membros para mais de 870, 16 deles prêmios Nobel; 85% dos acadêmicos são de países em desenvolvimento.

O crescimento da TWAS se alinha a duas questões que deveriam conduzir a uma ciência realmente global. Uma é que, para Palis, ao contrário de algumas décadas atrás, hoje ninguém mais defende que investir em ciência é um luxo para ricos. E a outra é que "desta vez enfrentamos problemas - a mudança climática, a crise alimentar e energética, a perda da biodiversidade, para citar os mais relevantes - mais urgentes, mais complexos e portanto mais difíceis de resolver", diz Palis.

Por isso o que é luxo hoje, mas que a ciência não deve se permitir, é prescindir de uma grande parte dos cérebros do planeta. Palis é matemático, ciência que conhece bem o valor de gênios procedentes do lado pobre do mundo. Um dos muitos exemplos é o de Srinivasa Ramanujan, um jovem indiano quase sem informação que no final do século 19 realizou algumas das mais importantes contribuições para as matemáticas.

O aniversário da TWAS serviu para que publicações científicas de prestígio dedicassem espaço para analisar a largura atual das brechas digitais, de conhecimento ou tecnológicas. Mohamed H. A. Hassan, diretor-executivo da TWAS, é quem aplicou em "Science" os termos "emergente" e "estagnado" para os dois tipos de sul. Na revista "Nature", Hassan também expõe alguns dados: o número de artigos em revistas de qualidade com pelo menos um autor chinês se multiplicou por 100 nos últimos 15 anos, situando a China apenas atrás dos EUA em produção científica. No caso da Índia, transformada em líder em tecnologias da informação graças em parte a seu peso em matemática e física, o aumento foi de 45% entre 2000 e 2005.

E no Brasil as publicações triplicaram nos últimos dez anos, conforme o grande aumento da população universitária e de doutores. Chile, Malásia, Vietnã ou Coréia do Sul também avançam. Mas no sul estagnado continua a África. Em um estudo próprio a TWAS identifica 80 países incapazes de desenvolver seu setor científico, e a maioria está na África subsaariana. São uma exceção África do Sul e Ruanda, e em menor medida Quênia, Senegal, Tanzânia e Uganda, onde também há progressos.

A TWAS não é o único organismo que faz o exame. Abdul Hamid Zakri, diretor do Instituto de Estudos Avançados (IAS na sigla em inglês) da Universidade das Nações Unidas, com sede no Japão, chamou várias vezes a atenção para a necessidade de promover a pesquisa nos países em desenvolvimento, especialmente na África, em temas que realmente lhes interessem. "As universidades e a pesquisa que se faz nelas devem ser relevantes para os governos locais, para as necessidades da comunidade. Do contrário, as universidades não sobreviverão", ele disse em um discurso na Unesco em Paris há dois anos.

Sobre outra conseqüência da brecha científica planetária o IAS publicou em maio passado o estudo "Acesso aos recursos genéticos na África". O mundo desenvolvido se desloca para países em desenvolvimento em busca de recursos naturais - sejam novas moléculas de interesse farmacológico ou proteínas potencialmente úteis para fabricar biocombustíveis -, mas os países doadores quase não se beneficiam, ou, no melhor dos casos, demoram muito a fazê-lo, com os resultados da pesquisa subseqüente.

O problema tem a ver com o que as organizações não-governamentais chamam de "biopirataria", e hoje também se coloca em novas esferas, como a exploração do oceano profundo. É o que explica o oceanógrafo e prêmio Nacional de Pesquisa Carlos Duarte: "Há muitos recursos no oceano profundo, de grande valor econômico, e de fato já há dezenas de patentes derivadas de recursos genéticos marinhos. O problema é que só há cinco países com tecnologia para alcançar 5 mil metros de profundidade: Japão, Canadá, EUA, França e Alemanha. Isso coloca graves problemas éticos. Esses recursos são obtidos muitas vezes em águas de países em desenvolvimento que não terão acesso aos potenciais benefícios".

A Convenção de Diversidade Biológica, que entrou em vigor em 1994, já incluiu entre seus objetivos "a distribuição justa e eqüitativa dos benefícios que resultem do uso de recursos genéticos". Mas segundo o estudo do IAS isso "se demonstrou difícil de implementar". Dos 191 países signatários da convenção, só 60 adotaram medidas para a distribuição de benefícios.

E ninguém diria que o exemplo seguinte é biopirataria, mas apóia a visão de que a ciência pode ser global para algumas coisas e para outras, nem tanto. O projeto internacional HapMap para estudar as variações genéticas individuais, algo essencial para entender por que os fármacos não funcionam igualmente em todos os pacientes, ou para encontrar genes que predispõem às enfermidades mais comuns, se alimenta de amostras proporcionadas por 270 voluntários. Como é indispensável dispor de populações diferentes, há voluntários iorubá da Nigéria e também da etnia han chinesa - tanto a China como a Nigéria participam do projeto.

Outro trabalho recente do IAS destaca uma incômoda conseqüência da falta de tecido científico no mundo em desenvolvimento: problemas de biossegurança. A falta de preparo faz que "uma centena de países em desenvolvimento" não utilize corretamente a biotecnologia, por exemplo em aplicações agrícolas, e isso "faz que a comunidade mundial seja vulnerável a ameaças de biossegurança. (...) Atualmente não há um sistema efetivo de biossegurança", denuncia o relatório.

Uma dessas potenciais ameaças é o temido bioterrorismo, a liberação no meio ambiente de agentes biológicos tóxicos. À luz desse resultado, Zakri se pergunta se a biotecnologia realmente ajudará a resolver os problemas do mundo pobre, como muitas vezes se afirma - teoricamente, com a biotecnologia se poderiam conseguir cultivos resistentes à seca ou mais nutritivos, por exemplo.

Diagnosticado o problema, há alguma solução possível? A TWAS destaca uma de suas principais conquistas: aproveitar exatamente o avanço científico do sul emergente e estabelecer colaborações sul-sul. Desenvolveram programas de pós-graduação com a Índia, China, México, Brasil e Paquistão, países que hoje recebem cerca de 300 estudantes do sul "estagnado", sobretudo da África. São programas criados para evitar a fuga de cérebros - há mais pesquisadores africanos nos EUA do que na África, segundo a TWAS - e promover a formação no país de origem.

Destinar mais verbas a Pesquisa e Desenvolvimento (P&D) também conta. A TWAS pediu há duas semanas, durante a comemoração de seu 25º aniversário, que os países em desenvolvimento aumentem seu investimento em P&D até pelo menos 1% do Produto Interno Bruto.

Enquanto isso, o que faz o mundo rico? A União Matemática Internacional dedica uma parte importante de suas verbas à cooperação. A Europa, dentro do Sétimo Programa Marco de Pesquisa, tem várias convocações de cooperação científica internacional, especialmente com seus vizinhos da região mediterrânea. O objetivo é promover o intercâmbio de pesquisadores e realizar projetos comuns. A Espanha também concede vários tipos de bolsas através dos Ministérios das Relações Exteriores e da Ciência e Inovação, e de organismos como a Fundação Carolina.

No entanto, na Subdireção Geral de Projetos de Pesquisa, não há programas voltados para a cooperação científica, e até agora foram feitos poucos trabalhos dessa índole. Um dos motivos, segundo fontes ministeriais, é que "não há demanda por parte da comunidade científica". “

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