quarta-feira, 24 de setembro de 2008

SOBRE AS VIÚVAS DA GUERRA FRIA

Li no Blog “Óleo do Diabo”, do jornalista, escritor e editor da revista Manuskripto, o muito bom texto abaixo:

“Há gente perdida em dimensões ideológicas fantasmas. Enquanto discutimos política presente e futura, analisando as perspectivas do capitalismo moderno brasileiro, que mescla, como qualquer capitalismo, pitadas de socialismo, umbanda e hip hop, ouvimos seu grito esganiçado, confuso, agressivo, acusando-nos de matar trezentos milhões de chineses e prender dissidentes políticos da Coréia do Norte.

Gostaria de entender que espécie de capitalismo é esse que eles defendem tanto, onde a economia afunda, o desemprego explode e, quando o país parece ter chegado ao fundo do poço, o governo decide tungar os contribuintes em mais 1 trilhão de dólares para... ajudar bancos e seguradores gigantes falidas!

Definitivamente, há uma grande ignorância sobre o que é democracia, capitalismo e socialismo. Acredita-se que socialismo se restringe à fórmula soviética do início do século, com o Estado dominando os meios de produção. Esta é uma concepção pobre e atrasada. A Europa já experimentou, nas últimas décadas, diversas formas de socialismo. Países como Noruega, Finlândia e Suécia, por exemplo, há muito tempo praticam uma espécie de socialismo onde o capital e a propriedade privada convivem harmoniosamente com o Estado e políticas de justiça social. O retrocesso político do PSDB aconteceu porque ele negou justamente essas raízes socialistas, convertendo-se num partido direitista neo-liberal, abraçando todos os preconceitos anti-estatistas e anti-socialistas que a social democracia original buscou superar.

A grande confusão é a ideologização distorcida de bandeiras como "justiça social", "combate à pobreza" e "distribuição de renda". Por isso a direita brasileira sempre foi burra e mais retrógrada que suas congêneres estrangeiras: ela não enxergava que a distribuição de renda era condição sine qua non para desenvovimento e consolidação do capitalismo no país. Mas a cegueira vai mais longe.

Em toda a América Latina, floresceu uma direita extremista neoliberal que concebe um capitalismo abstrato, sem mercado interno, e uma democracia sem povo. Ou seja, é uma direita fora da realidade. Contraditória. Ao mesmo tempo em que criminaliza ideologicamente qualquer política voltada aos mais pobres, acusando-a de "estatismo" essa mesma direita sempre viveu às custas do Estado, dominando a alta burocracia estatal, os principais cargos políticos e com suas empresas dependentes de encomendas do Estado e benevolências fiscais.

A direita acusa - ou acusava até pouco tempo - o Bolsa Familia de ser um programa proto-comunista, uma esmola estatal, que incentivava as pessoas a não trabalharem. Os colunistas repetiam isso. Ninguém se dava ao trabalho de apurar as ajudas estatais existentes nos países capitalistas ricos, como EUA, Europa e Japão. São ajudas muito mais consistentes. Nos EUA, por exemplo, pátria do capitalismo liberal, milhões de americanos, nos últimos 50 anos, atravessaram fases difíceis de suas vidas recebendo seguro desemprego e pensões diversas, pagas pelo Estado. A era neo-liberal, pós Ronald Reagan, acabou com muitos desses benefícios, e o resultado foi o que estamos vendo agora. A mesquinhez neoliberal só é válida para os pobres. Na hora de emprestar aos ricos, eles são super generosos.

O debate ideológico é importante, mas não se trata aqui de resgatar o maniqueísmo capitalismo X socialismo, ou mesmo esquerda X direita. Uma das teorias que venho procurando provar há tempos é que o capitalismo não é um sistema de governo, não é um regime político, nem mesmo um regime econômico. É simplesmente uma utopia ideológica, assim como o socialismo.

Nosso regime político e econômico é a Constituição, onde está prevista a obrigação do Estado de promover o bem estar e a justiça social, regular os abusos de poder dos grupos privados, e dar educação e saúde gratuita para todos os cidadãos. Está tudo lá, no livrinho. Extremistas de direita como Olavo de Carvalho já perceberam isso, e por isso vivem à beira da histeria: para eles, vivemos num mundo socialista. Isso porque eles são utópicos, e como tal, semi-dementes. A ONU, para eles, virará uma grande organização internacional que exercerá o poder político planetário. Estão certos, mas e daí? Que outra solução eles queriam? O mundo regido pela Casa Branca?

E que isso tem de comunismo, Mon Dieu? Eles vivem sob terror constante, acusando jornalistas e artistas de serem "petistas", "comunistas", "vermelhos", como outrora simpatizantes das KKK perseguiam qualquer pessoa com a pele não adequadamente branca e os nazistas fuzilavam quem tivesse uma gota de sangue judaico. Eles não percebem que isso não tem mais importância. Com a consolidação das organizações internacionais, o mundo entrou numa fase, senão de consenso, mas de harmonia ideológica. Por isso Chávez concordou em abraçar Uribe. Ainda existem tensões políticas entre os países, mas a ideologia não é mais a razão principal. Se é que algum dia foi. A própria tensão ideológica que assistimos nos países sul-americanos, não é mais que a luta pelo poder entre diferentes grupos econômicos.

Veja o caso de Evo Morales, por exemplo. Ele decidiu usar parte do dinheiro arrecadado com a venda de gás para o pagamento de pensões para idosos. Que isso tem de comunismo? Que tem isso a ver com autoritarismo? Trata-se de uma política que poderia ser feita por qualquer político de direita, e não me venham dizer que um político de direita seria mais "democrático". Se há falta de espírito democrático na Bolívia é sobretudo nas províncias "separatistas" da Bolívia, que não apenas desrespeitam sistematicamente o presidente eleito do país, como demonstram possuir nenhum espírito democrático. Montesquiet afirmava, com todas as letras: só ama a democracia quem ama a igualdade.

No entanto, qualquer conceito, palavra, idéia, podem ser distorcidos e interpretados tendenciosamente. "A verdade é uma nuance entre mil erros", dizia Renan. Não há verdades fáceis, mas também não há mentiras fáceis. A dificuldade de se compreender a verdade, todavia, não é uma virtude erudita, nem mesmo intelectual. Daí o meu ceticismo quanto à sagacidade conceitual e ideológica dos intelectuais. A principal ferramenta da inteligência humana é a intuição. E não se pode comprar a intuição.

Pode-se comprar faculdades em Yale e Sorbonne. Pode-se comprar conhecimento de línguas. Enfim, o dinheiro pode comprar todo um código cultural de elite, mas a intuição é como o talento: é um mistério, que mistura dom, experiência, estudo, coragem e renúncia. A intuição vale para tudo. Por que não para a política? Vale para a literatura, com certeza. Vale para a música, é óbvio. E para o amor, naturalmente.”

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